NO CAMINHO COM MARILDA CONFORTIN

Entrevista concedida à Bárbara Lia

BÁRBARA: Em entrevista a Lina Zeron você contou do teu tio que declamava poesias de Olavo Bilac prá você dormir. Um ponto em comum entre nós duas. Eu cresci ouvindo meu pai falando poesia a plenos pulmões já no café da manhã. Em um tempo que vivi na casa da minha avó ela também recitava épicos e era um tanto tétrico: Vovó recita “O corvo”. Sala na penumbra. TicTac. Arrepios.
Lendo tua entrevista fiquei tocada com a conclusão tua sobre – quem é poeta - pode narrar esta descoberta outra vez?

MARILDA: Ainda bem que eu não conheci o Poe na infância, Bárbara. Tive um urubu de estimação....Pois é, eu me descobri poeta muito cedo. Antes mesmo de saber ler e escrever. Nasci na roça, em casa, de parto natural, como nasceram os meus 11 irmãos mais velhos e todos os bichinhos que nascem e crescem distraidamente no mato. Fui a décima primeira da ninhada. Quando eu tinha menos de dois anos, nasceu mais um irmão, o Claudinho. Ele tinha síndrome de Down e fomos criados juntos. Como ele não sabia falar, inventamos uma linguagem própria. Nos comunicávamos através dos sons da natureza, dos animais e das aves. Entendíamos perfeitamente a linguagem das nuvens, dos raios, dos trovões, da chuva, do silêncio, do dia e da noite. Sabíamos traduzir a letra da música que os galos cantavam, entendíamos o que nossos cachorros queriam dizer com seus latidos diferentes para cada situação, conhecíamos os bichos venenosos e não venenosos pelo cheiro e pela cor, as abelhas e passarinhos nos contavam quais as frutas que podíamos comer, as borboletas nos ensinavam as estações do ano, o caminho das flores e a direção do vento, enfim, não precisávamos de palavras nem escola. Daí um dia meu irmãozinho morreu e eu virei a caçulinha da família. Talvez por saudades do Claudinho, ou por não ter mais um bebê em casa, todos resolveram me dar colo, me mimar, me ninar. Só que eu não compreendia ninguém e ninguém percebeu o que tinha acontecido. Me tranquei num mundinho meio autista até que um dia, o tio Renato, veio nos visitar e resolveu me fazer dormir recitando aquela poesia assim: “Ora (direis) ouvir estrelas...“ É claro que em vez de dormir eu acordei e desatei a perguntar. “ Tio, você e o tal do Olavo também entendem a língua das estrelas? E a conversa dos raios com os trovões? E dos cachorros? E dos passarinhos? E das cachoeirinhas? Então vocês também são mongolóides como eu e o Claudinho?” Daí, ele me disse uma coisa que nunca mais esqueci e que me tirou do silêncio para sempre. Disse-me que eu não era doente. Que eu só era poeta, assim como ele, Olavo Bilac, Castro Alves e muitos outros anônimos que sabiam falar uma língua diferente, chamada poesia e que eu devia ir prá escola, aprender a ler e escrever para traduzir no idioma dos homens aquelas coisas que a natureza me contava. Confesso que até hoje estou tentando aprender essa maledeta língua dos homens. Prefiro a linguagem da poesia, no seu estado bruto, antes de ser transcrita para um idioma. A palavra deforma o sentimento. 
Marilda, criança, poeta em estado bruto


BÁRBARA:Você integra o Movimento Internacional Poetrix. O que diferencia Poetrix e Haicai?
MARILDA: O haicai existe há séculos. É um terceto de origem oriental, sem título, composto de 17 sílabas, distribuídas em três versos de 5, 7 e 5 sílabas métricas, ou melhor, onji (sons) e tem como característica, identificar o kigo (estação do ano em que foi escrito). É como uma senha, uma fotografia de uma paisagem num tempo fugaz num lugar específico. É como se você enviasse para o leitor o endereço de onde você está, contando o que está acontecendo naquele exato momento. É lindo. É zen.
Poetrix é um terceto também. Vem de poe = poesia e trix = três. Foi batizado com esse nome por volta do no ano 2000 pelo poeta baiano Goulart Gomes. Portanto, diferente do haicai, o poetrix é brasileiríssimo e atualíssimo. Sua definição é “Terceto contemporâneo de temática livre, com título, ritmo e um máximo de trinta sílabas, possuindo figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor satírico.” No poetrix, os tempos passado, presente e futuro podem ser usados sem distinção. O Poetrix é minimalista, ou seja, deve dizer o máximo com o mínimo de palavras. Como disse Goulart Gomes na apresentação do meu livro, fazer poetrix é plantar girassóis em cabeça de alfinetes.
Gosto de dizer que o Poetrix é o filho bastardo do haicai. Tudo o que o haicai originalmente não permite, o poetrix admite, incentiva e valoriza: título, metáfora, ironia, humor, estrangeirismo, intertextualidade, erotismo, crítica, interação escritor/leitor, non sense... Muita gente pensa que escreve haicai, quando na verdade escreve poetrix. O contrário também é verdadeiro. E tem muita gente que escreve tercetos que não são nem haicais nem poetrix... tudo bem, o que importa é sentir a poesia, tudo mais são regras que só servem para instigar os poetas a quebrá-las. Eu gosto muito de haicai, mas, tenho mais facilidade e prazer em escrever Poetrix.

BÁRBARA: Conte sobre sua participação em eventos internacionais de Poesia. No México, em 2.003 e no III Festival Internacional de poesia em Granada, em 2.007, na Nicarágua. Como surgiram os convites, o que isto acrescentou à sua poesia.

MARILDA: Nossa! Essa pergunta tem muitas respostas. Difícil resumir. Acho que você vai ter que cortar alguma coisa para não ficar tão extensa. Participar de festivais de poesia pelo mundo é bárbaro, Bárbara. Nesses dois que você citou, eu tive o privilégio de ir como convidada, representando o Brasil.
O convite para o México, foi uma conspiração do universo a meu favor. Eu fui receber um prêmio em Brasília, por uma crônica que ficou em primeiro lugar num concurso internacional chamado Mujeres, mariposas sin capullo e minha “performance feminista” no palco, foi assistida, sem eu saber, pela poeta e jornalista Lina Zerón, uma das organizadoras do X Festival Internacional de Mujeres Poetas en el país de las nubles (Oaxaca). Para surpresa geral, dois meses depois, recebi um convite oficial para representar as poetas brasileiras no México. Lá ficamos hospedadas em casa de famílias de origem mixteca, asteca, maia e trocamos experiências sobre nossas culturas, literatura, arte, culinária, etc. Durante 20 dias, viajamos de um estado a outro, de uma cidade a outra, recitando e falando sobre a poesia de nossos respectivos países, em escolas, universidades, teatros, museus, igreja e praças. Uma maratona. Era uma torre de Babel. Cada uma das 70 poetas falando e recitando em seu próprio idioma, para que a população sentisse a musicalidade, o ritmo e a alma poética do mundo. O encerramento foi no magnífico Palácio de Bellas Artes, todo decorado com pinturas de Diego Riveira e Orozco entre outros imortais. Um luxo. De curioso, no México aprendi a comer gafanhoto e gusano (aquele vermezinho que colocam na tequila). Beber tequila, foi conseqüência de comer gusanos... rs.
Depois disso, caí numa teia virtual de poetas que promovem e participam de Encontros e Festivais Internacionais de Poesia. Choviam convites. 
Para o Festival de Granada, fomos convidados Thiago de Melo e eu. Thiago, é um ícone, o poeta brasileiro mais lido por lá, amigo pessoal e tradutor de Ernesto Cardenal.  
Na Nicarágua, o que mais me impressionou além dos inúmeros vulcões ativos e inativos, foi o carnaval poético pelas ruas de Granada. A cidade literalmente pára para ouvir poesia. Durante o Festival, em cada esquina, um poeta sobe no “poeta móvel”, apresenta seu país e recita poesias. E depois, se mistura com as pessoas na rua e dá-lhe música, dança, rum flor de caña de manhã até a madrugada. 
Beber um vinho com o poeta e monge Ernesto Cardenal, ouvir seu poema Oración por Marilyn Monroe, a história dos movimentos sandinistas pela paz e sua participação na revolução armada contra a ditadura de Somoza, é um capítulo a parte na minha vida. Impagável. 

Eu, bebendo vinho com Padre Ernesto Cardenal

Os convites para esses festivais funcionam assim: Um poeta de algum país te indica, outros de outros países endossam, a organização cultural do país promotor sai captando recursos na iniciativa privada para bancar as despesas de viagem dos poetas convidados, a população se inscreve para hospedar os poetas estrangeiros que não tem grana para pagar hospedagem e alimentação e tudo isso em troca de recitais, palestras e oficinas gratuitas abertas ao público. É um intercâmbio cultural. Pena que no Brasil, o governo, ongs, iniciativa privada e os próprios poetas e artistas não se unam para promover festivais desta natrureza.

"O que isto acrescentou à sua poesia?” Ai cazzilda, Bárbara! Acrescenta muito! Esses festivais, me confirmam que a poesia é uma linguagem de alcance universal, sem fronteira alguma. E que quanto mais simples (simples, e não simplista), melhor é a poesia. Melhor para traduzir, melhor para recitar, as pessoas se identificam com maior facilidade. E que quanto menos “estrela” você for, mais estrelas vão aparecer para iluminar teus caminhos. 

BÁRBARA: Meu amigo, o poeta Márcio Claudino, realizou um estudo sobre a poesia curitibana atual e a separou em duas tendências: “Poesia de Expressão Vital” e “Poesia de Composição Onírica” . Ele me colocou ao lado dos poetas oníricos, mas, um belo dia me confessou que algumas poesias minhas tem este lado visceral. Expressão crua da vida. Como leitora, qual o poeta que é sua paixão maior? Ou poetas, ou escritores? Os líricos te seduzem? Eu sou lírica e amo ler os escritores viscerais - Fante, Miller, entre outros...

MARILDA: Acho que todo o poeta é um sonhador. Sendo assim, acho que toda a poesia é onírica no sentido literal da palavra. Mas nem todo o sonho é maravilhoso. Eu tenho pesadelos terríveis, principalmente acordada... rss. Concordo com o Márcio. Você tem um lado visceral, principalmente quando o poema tende para o erótico. E tua presença me passa uma imagem muito realista, marcante, contrastante com as metáforas oníricas da tua poesia. Mas, eu AMO teus contrastes...
Pois é, tenho minhas recaídas, graças a Deus, mas os líricos não me seduzem muito, não. Meu lirismo ficou lá na infância, enterrado com meu irmão e com Bilac. Espero ressuscitá-lo algum dia, mas, como diz nosso amigo Paulo Matos, do Epopéia: “o duro da vida, é que ela nos endurece”. Não freqüentei nem me enquadrei em nenhuma escola literária. Fui pro pau! Peleio com a vida e com a palavra meio no grito, na defensiva, no instinto, sem embasamento teórico, na hora e no tom que elas me provocaram. É um toma-lá-dá-cá. Sei que, por conta da minha figura minguada e do carma dos olhos azuis, os curitibanos esperam que eu declame poemas brandos, à la mestra Helena Kolody, mas, para decepção dessa cidade, eu me identifico mais com as malditas pauladas do Leminski e do Thadeu.
Qual foi a pergunta mesmo? Ah, os poetas que gosto... vixi, pra ser po(ética)mente correta eu teria que citar os mortos prá não ferir os vivos, né? Pulo essa, Bárbara.

BÁRBARA: A peça “ Portas Entreabertas” com Danilo Avelleda e Adriana Sottomaior, apresentou textos de Helena Sut e Danilo Avelleda e poemas teus. Como foi esta experiência – escrever uma peça teatral? Planos futuros para os palcos?
MARILDA: Foi uma experiência meio doida. Eu tinha que escrever os poemas que seriam interpretados pelo Danilo. Tive que incorporar o personagem Dionísio, um homem, um poeta passional. Ser um Dionísio dividido entre a paixão por Pilar e Alma. E tive que me entranhar no útero introvertido da Helena Sut para entender o enredo dramático, intimista e cheio de palavras sangrentas da peça. A Helena é phoda. Ela já tinha experiência em texto teatral. Eu nunca tinha escrito para teatro e nem composto poesia como se eu fosse um homem. Por mais que se diga que não há diferença entre a poesia feminina e masculina, a verdade é que nossa escrita tem uma boa carga de experiências de vida, de cultura sexista, valores morais e sociais diferentes. Não assisti nenhum ensaio. Na estréia da peça, me assustei ao ouvir alguns textos meus na voz do Danilo. Fiquei mais a vontade quando falados pela Pilar e Alma... Depois acostumei e quase não percebia mais a diferença entre o que eu escrevi e o que a Helena escreveu. Danilo, Adriana e Raquel são atores porretas. A direção do Rogério Bozza foi perfeita. Mas, vamos ser honestos: Eles foram corajosos, né? Uma peça dramática, poética, intimista, competindo com comédias em todos os teatros de Curitiba...Só por amor a arte, mesmo.
Sim, pretendo escrever mais para o teatro, mas preciso liberar tempo para pesquisar, fazer um curso de atriz, aprender as manhas teatrais... Helena e eu temos algumas idéias de peça teatral para o futuro... quem viver, verá. 

Bárbara Lia,  professora de história, escritora com vários livros publicados. 
Site:    http://chaparaasborboletas.blogspot.com