COMÉ QUE FICA MEU PREJUÍZO?


(Da série: “histórias secretas de amigos e inimigos” – por Marilda Confortin, com a co-autoria e cumplicidade dos personagens principais)


Encostados no balcão da lanchonete da rodoferroviária de Curitiba, os dois amigos tomavam café da manhã. Trabalhavam na redondeza e se divertiam ouvindo trechos de conversas de pessoas desconhecidas que passavam pela estação. Quando o ônibus partia, se alguma mulher olhasse pela janela, os dois acenavam, jogavam beijos para a estranha e não raramente faziam gestos obscenos ou gritavam frases como: “- Não me abandone, meu amor! Volte para nossos filhos! Por favor não se vá” ou ´pior “ Vai... vai embora sua piranha! Cadela sem vergonha! Vai viver com seu amante, vagabunda!”.

A infeliz fechava a janela constrangida enquanto os outros passageiros abriam a janela para ver e ouvir o que eles gritavam.  

Outra diversão dos dois amigos era inventar diálogos a partir de uma frase que ouviam nas despedidas, colocando-a num contexto que não tinha nada a ver com a conversa.
 
Naquele dia, por exemplo, uma senhora cuja saia farta e florida entrava incomodamente nas nádegas também fartas, embarcou no ônibus da Reunidas e despediu-se de um homem mais jovem, dizendo “... e faça o que eu mandei!”. Um deles pegou daí e emendou: “Pode deixar, sua velha desgraçada. Vou encher sua filha de porrada”. E o outro complementou: “Ai benzinho, bate mais, assim, isso, mais, mais, gosotosão!”  

O viajante encostado no balcão da lanchonete, esperando um misto frio e um pingado, olhou para os dois marmanjos e balançou a cabeça, inconformado com aquela brincadeira de mau gosto.  

O lanche do viajante chegou. O sujeito deu uma mordida, mastigou, fez uma expressão de quem está experimentando um sabor inesperado e olhou intrigado para o sanduíche.  Tomou um gole do pingado, deu uma abocanhada maior, mastigou, mastigou, franziu a testa, mordeu de novo, engoliu e olhou interrogativo para o lanche.  Repetiu isso várias vezes, até restar somente um terço do pão.

─  Moça, não tem queijo aqui nesse misto!

A garçonete pegou o resto do sanduíche que sobrou na mão dele, abriu-o e constatou que não tinha queijo. Mostrou para as outras moças. Cochichou no ouvido da amiga, dizendo que talvez o sujeito já tivesse comido todo o queijo. Uma delas cheirou o sanduíche e confirmou: “não tem cheiro de queijo”. A outra sugeriu dar uma fatia de queijo para o freguês ficar quieto.

─  Não quero uma fatia de queijo. Eu pedi um misto: pão, presunto e queijo. Entendeu?

A moça, tentando evitar discussões constrangedoras, lhe ofereceu mais um misto frio de graça.
 
─ Não quero outro! Quero o que pedi! Comé que fica meu prejuízo?

Sem saber o que fazer, a garçonete chamou o gerente, explicando a situação. Ele propôs descontar o valor da fatia de queijo. O passageiro descontente e indignado retrucou:  

─ Não quero desconto. Fui enganado. Quero saber comé que fica meu prejuízo! Você não entende?

O gerente tentou acalmá-lo propondo devolver todo o dinheiro que pagara pelo sanduíche.

─ Não quero dinheiro!  Você não entende? Você não pode me devolver o que nunca lhe emprestei. Você não pode me dar o que nunca teve. Você não pode desfazer o que nunca fez. Você não pode fazer nada.  Eu só quero saber comé que fica meu prejuízo?  

Os dois amigos pagaram a conta e voltaram para o trabalho calados. Aquele trecho de conversa ficou martelando em seus pensamentos como prego em suas carnes.   

Como é que fica meu prejuízo? Quem vai restituir o apetite depois de enganada a fome?  Como preencher a falta do que nunca existiu? Como explicar a presença da ausência?  Como cobrar uma dívida se não há devedor? O que dizer para alguém que passou dois terços da vida esperando encontrar sua “fatia de queijo” que nuca existiu?  Quem vai me ressarcir o tempo, o gosto, a vontade, o prazer, a fome? Quem? Como é que fica meu prejuízo?  Você me entende?