Largando da Ordem - como se fosse Marilda Confortin

LARGANDO DA ORDEM
(como se eu fosse Marilda Confortin)
por ELIAN WOIDELO

Esse guri, Elian, várias pessoas pensam que ele é meu filho. E é assim que eu o considero. Exceto quando merece um puxão de orelha e o pai dele está por perto, já que ambos são músicos e vivemos esbarrando uns nos outros nos bares da vida. Daí, inspirado no meu velho poema "Largo Esquerdo da Ordem", ele me dedica esse "Largando da Ordem"


Largo larga de mim
Sou um amante chato
Sempre corro atrás
Nos bebedouros
No cavalo que baba a palavra
Santa da fé proibida
Oculto é meu olhar
Neste dia frio
Em cujas sombras tomam meu ser
Meu não ser
Meu vencer
Me vê mais um por favor?
O meu dia ainda é pedindo piedade aos
pombos que vagueiam a procura da
verdade.
Verdade é erro é engano
É aquilo que faz química em meu
coração curitibano


Esse poema faz parte de um livro do Elian, um jovem  jornalista de vinte anos, que escreve poesia, prosa, canta, toca, compõe, fala 4 idiomas, tem muita pressa de viver e recita poesias por aí, comigo ou sem migo, mas sempre meu amigo. Te cuida, querido!

O frio vem chegando - de Tonicato Miranda


de Tonicato Miranda,
para Helena, a personagem principal do conto “Um país estranho”
do livro Contos – Volume 3 de Ernest Hemingway



fim do dia
fim da tarde
fim do verão
e das férias,
fim de festa
fim do calor
um dia igual
àqueles dias
da velha Curitiba
onde o frio
comigo dormia
e ao acordar
o café no bule
o vapor suado
o dia amanhecendo
na janela
um passarinho
trinado tímido
como quem quer
ou não quer
como o mal me quer
também ele tímido
no jardim geado
no branco estrelado
de noites onde
alguns morriam
e outros brincavam
embaixo de lençóis
mas tudo isto
agora jazz
mesmo assim
seja bem-vindo frio
se faltam-me lágrimas
mas vinhos vamos tomar
pelo menos vou sorrir
um pouso ou nada
ao lado do meu
travesseiro de fé
com ou sem uma mulher
levando-me aos sonhos
como este poema
com feijão sem arroz
tendo ele muita água
para tão pobre jantar

Blumenau, 22/2/2010
TM

Poesia Ode ao bar

eu, que flagra!


Certos bares
são como lares
que nos acolhem
que nos escolhem
para adotar.

Órfãos que somos
em noites insones
lobo sem dona
loba da estepe
valetes e damas
vão se encontrar

Certos bares
são como Hermes
de saudosos bardos
Prados, Cardosos,
Walmores, Bias,
Cachorros Loucos
pela poesia.

Certos bares
são relicários
Kappelle, Stuart,
Alemão, Pudim,
Becks, Batata,
Bife, Tatára
tomara que seja
sempre assim

Entre um bar que abre
e outro que fecha
tem sempre uma brecha
onde a poesia
namora escondido
com a boemia.

Curitiba é o bar
e o bar é o mar
que não se comporta
que abre a porta
e se deixa vazar.

Curitiba é o bar
e o bar é o mar
onde a musa
da música
vai se banhar

Metamorfose

imagem: http://www.metamorphose.co.at/

(Da série: “histórias secretas de amigos e inimigos” – por Marilda Confortin, com a colaboração e cumplicidade dos personagens envolvidos)

Era uma vez, uma lagarta chamada Ana, que sonhava ser leve como borboleta, queria ser perene como uma pedra e forte como uma mulher.
 
No tempo em que era uma lagarta, vivia se arrastando, comendo migalhas que caiam  já que não alcançava a copa das árvores, tinha medo até das poças d´agua porque não gostava da sua imagem refletida nos espelhos e vivia procurando um lugarzinho seguro para construir um casulo e criar seus filhotinhos conforme as regras da sociedade do seu pequeno mundo.

Um dia Ana encontrou um robusto arbusto que lhe estendeu a mão. Teceu seu casulo, acomodou-se lá dentro e sentiu-se muito feliz e confortável por algum tempo. Chegou a esquecer os outros sonhos.

Um dia ao acordar, percebeu que o galho havia quebrado, a casa havia caído e os cupins haviam devorado tudo o que ela amava.  Sentiu muito medo e chorou. Mas, chorou por um tempo bem menor do que o tamanho do seu medo e sua dor. Chorou um tempo de inseto. Olhou para trás e viu que o caminho do passado tinha crescido e já era muito maior que o caminho do futuro. Ficou pensando numa maneira de chegar rapidamente ao fim daquela estrada.

Pensou em meter uma bala na boca, mas só tinha bala de hortelã e já estava enjoada de ser vegetariana. Lembrou-se de que um dia quis ser borboleta e pensou que, se voasse, poderia vencer a distância com mais rapidez e recuperar o tempo perdido.

Engoliu o choro, subiu nos escombros da própria crisálida, desamassou as asas, pulou de cabeça na nova vida e sobrevoou o pequeno quintal.  

Mas, logo percebeu que suas asas rotas pelo desuso, já não eram tão fortes. As flores do jardim que durante muitos anos Ana admirava debruçada sobre o peitoril da janela de seu casulo, já alimentavam outros bichos tão ou mais vorazes que ela. Havia pouco néctar e muitos predadores.

Conheceu uns bichos grilos interessantes que lhe contaram sobre os mundos além do muro. Encorajaram-na a voar para mais distante.  

Subiu no mais alto galho, reuniu forças e pulou.  Conheceu a fúria dos ventos, o frio da noite, a fome dos pássaros, a escassez das flores, a crueldade dos humanos, a idade da terra e descobriu que o céu não era azul, talvez nem existisse.

Deu-se conta de quão efêmera e frágil era a vida de uma borboleta. Será que era mesmo preciso ter asas para voar? Porque ela não se sentia tão leve como imaginava ser uma borboleta?
Depois de um tempo, se deu conta que, de tanto lutar para ser livre, seus sentimentos haviam endurecido ela se transformara numa rocha.

Sentiu-se estranhamente aliviada com essa nova metamorfose. Afinal, um dia ela sonhou ser pedra.

Pedras não precisam respirar, nem comer, nem voar, nem reproduzir, nem pensar, nem se explicar, nem defender-se de predadores. Pedras não precisam ser leves, nem jovens, nem preciosas, nem bonitas. Pedras são silenciosas e sábias. Guardam segredos e sabem a história dos tempos. Não necessitam das necessidades humanas.

Encarou o medo dos espelhos e rolou para a beira de um rio que passava distraído em sua frente.

Ana viveu um longo tempo de pedra, contemplando o nascer e o morrer dos dias e de tudo que nasce e morre dentro dos dias. Ouvia histórias de águas passadas, deixava o tempo lapidar seu corpo, sua mente e, sem resistir deixava-se levar pelas horas vadias.  Adormecia ouvindo canções de ninar das cachoeiras.  Sentia-se livre e leve como nunca.

Numa manhã clara de inverno, uma imagem refletida nas águas do rio chamou sua atenção. Parecia tão familiar... Forçou os olhos quase cegos para enxergar melhor. Qual não foi seu espanto, ao reconhecer seu próprio rosto estampado naquelas águas.
   
Ana havia enfim, se transformado numa mulher. Estava no jardim de uma clínica. Inclinou-se um pouco mais para ver sua imagem. Foi quando a cadeira de rodas que a manteve inerte como pedra por muitos anos moveu-se e ela caiu dentro do lago.

Fechou os olhos e inspirou profunda e calmamente sua imagem refletida nas águas.

Tudo acabou como sonhara. 

A borboleta cumpriu seu ciclo.  

Cagadas

Estou aqui, ainda acordada. O dia roubou o sono da noite. Abro a janela (sempre as janelas... o que seria da vida não fossem as janelas e os benditos parênteses?) e fico olhando um céu imenso, estrelado.
Quantas dessas estrelas já se apagaram e seu brilho ainda me atinge?
Quantas existem, cuja luz ainda está a caminho?
Olho um céu de cem anos atrás e tento esquecer o dia de hoje e os problemas que tenho que resolver amanhã. Que paradoxo!
Alguém pode avisar aquele céu que ele não existe mais?  Alguém pode dizer àquela estrela que seu brilho chegou tarde? Alguém aí em cima pode me dar uma luz?
Meus filhos acordam e perguntam com quem estou falando. Nem respondo. Vou até a cozinha e pego um copo de água. Eles vão ao banheiro e depois empilham-se na minha cama. Esquecem que cresceram. Querem saber por que perdi o sono e ao ouvir meu longo e duplo suspiro, o filho me diz:-    Sabe mãe, esse ar que você inspirou aí, ainda contém poeira cósmica.-    E essa água que você está bebendo,  já foi xixi de dinossauros - Diz a filha.
-    Pode ser, meus filhos... Pode ser... Mas neste momento estou respirando o pum que vocês acabaram de soltar. E o xixi que vocês acabam de fazer, amanhã será tratado, voltará às torneiras e será debitado na nossa conta de água. A realidade é agora, gente.
-     Putz... Eu fiz o número dois, também... E puxei a descarga. Que nojo! Quantos miligramas de urina a gente elimina por dia?
-     Sei lá... Uns quinhentos, acho.
-     E de merda? Meio quilo?
-     E eu sei? Isso é hora de fazer essas perguntas?
-     Uma cidade como Curitiba, que deve ter em torno de dois milhões habitantes, despeja um milhão de litros de mijo e mil toneladas de merda por dia. É isso? Imagina isso num ano?  365 mil toneladas de merda por ano, mãe... P u t a  q u e  o  p a r i u!
-     É uma grande merda! E vocês são jovens ainda... Imagine essa bosta toda vindo à tona quando vocês tiverem minha idade!
Demos boas risadas, apagamos a luz e dormimos abraçados. Afinal, com tanta merda neste mundo, porque perder o sono por causa de uma mensalidade atrasada na faculdade e outras pequenas cagadinhas do dia a dia?
Antes de fechar a janela, dei mais uma olhadinha pro céu e vi que as estrelas estavam todas lá, piscando prá mim.
"Ouvir estrelas... ora, direis"
Bilac sabia das coisas...

(Marilda Confortin -  in Pedradas - crônicas, 2002)
RUA 13


O beco é escuro…
Rua 13…Rua 13…
Bocas que sugam sangue
Olhos que choram sangue
Solidão e miséria.

É noite…
Sinto qu’é noite.

Não porque o sol s’escondesse
Não porque a sombra descesse
Mas porque no meu coração
O brado dessa miséria
Se fundiu, se faz sentir.

É a noite que nos arrasta.

Não é só a noite…

É noite. Uma noite espessa, sem paz.
Sem Deus, sem afagos,
Sem nacos de pão, sem nada.

Uma noite sem distâncias…
Apenas noite.

Mas por trás dos altos montes
A aurora vem surgindo.

Tudo o que à noite perdemos
O dia nos traz novamente.
Surgem aves chilreantes
Badalar manso de sinos
Cantos suaves do mar.

No alto da Rua 13
Brilha tremendo uma luz.

É o sol…A esperança,
Que um dia aquela rua
De almas sem luz e sem sol
Também veja o alvorecer.



Entre o fomos e o fui...
Fado norte, fado sul
Nacos de nada e tudo...

Joseli
SOLIDÃO DE UMA ESTRELA
Sonia Maria Mazza
Somente uma estrela

ficou,
triste e só na melancólica noite.

As outras todas...
Umas morreram
outras
desapareceram.

E a estrela só,
vagando no firmamento
com sua lânguida luz
quase fenecendo,
tropeçava nas estrelas mortas
buscava lembranças
das desaparecidas.

Derramou, então,
as primeiras lágrimas
de saudade.

O firmamento
sóbrio e sombrio
fechado em seu mundo calado
permaneceu indiferente
à dor daquela estrela.

Tornando-se cúmplice da noite
tudo desapareceu,
deixando apenas
a estrela só.

E ela,
percorrendo o espaço sideral
viu todo o universo
e em seu pranto convulso,
sentiu-se ainda mais só....

Sônia Maria

O resto da minha vida - de Tonicato Miranda



para os amigos do Varandaes

Foto: Osni Ribeiro

Triste... é assim
meus olhos choram
cinza... o jasmim
refletindo a cor do céu
cinzas no jardim e em mim

O que fazer agora
com o resto da minha vida...
ouvir Bill Evans, por horas
a tristeza escorrendo, se deixando levar
rio abaixo, tempo afora

O piano deixa cair um plim
notas musicais em sequência
lentamente caem também de mim
são folhas da memória descendo
calmamente do rio ao mar, e ao fim

O que fazer amanhã
com o resto da minha vida
passear no parque envolto em lã
sentar num banco, mirar passarinhos
ver na pedra Bashô e o salto da sua rã

O piano convida e eu vim
emprestar o ouvido à emoção
a lágrima pulando do olhar assim
mais do que rio, ela é o barco da alma
reflexo musical, um acorde: meu plim

O que fazer na próxima semana
com o resto da minha vida
papéis antigos, fumaça na cabana
neste inverno rigoroso revejo amigos
um bom vinho pode me levar a Havana

Triste... é assim
meus olhos choram
cinza... o jasmim
refletindo a cor do céu
cinzas no jardim e em mim

Tonicato Miranda
Curitiba, 18/09/2004

O VENDEDOR DE AGULHAS

de Daniel Farias


há uma dor fria
que atravessa a fina lâmina
do vendedor de agulhas.

há uma metálica metáfora
que corta a tarde cinzenta,
entre surdinas e sirenes ocultas,
do desconhecido e invisível
vendedor de agulhas.

há um silêncio de ferro
nos rostos, nas almas
e nas calçadas por onde passa
o vendedor de suplicantes agulhas.


há um único fio que prende e conduz
o homem que passa, sem ser visto,
a outros homens que carregam
nos bolsos descosturados uma
dor que perfura a alma e denuncia
aquilo que se perdeu...

comovendo junto

árvores sem movimento
dói o mormaço lá fora

eu moro por dentro
vivo de brisa
e demoro longe

não vejo a hora
quebro vento
e arrumo galho

o pouso da ave
vale quanto penso
não move uma palha

apenas o sopro do sentimento
comovo uma folha

(Roberto Prado)

Grafitrix Rapidinha




Festejar
Miriam Brasil

Louca prisão que expõe meu corpo, outrora livre,
porque agora e não depois?
Ouso, arrojadamente, na entrega do sentimento emanado da presença ausente de teus olhos...
Ouço a balada ferindo rente e inexorável!
Oculto-me em defesas...
Finjo não perceber os anseios e apelos de tua alma
disparando explosivamente em minha direção...
Deliro na tentação...
E a noite do corpo sem estrelas
a tentar aplacar as tempestades que vertem de meus ossos.
Melhor... ousarei festejar os lilases!
(Miriam Brasil)

5 poemas de amor e ódio

Cinco poemas de amor e ódio escrito a 2 mãos apaixonadas
Por: Douglas Pereira e Marilda Confortin


I

Não há mais laços.
Só sobraram os nós.
Rotos, partidos.
Soçobramos nós.
Bagaços, feridos.

E quem tira essa ira que nem sei onde mora?

Tem hora que sinto na boca,
no oco do estômago,
no buraco do peito,
no escuro do olho,
nem sei direito.

Se eu me der um soco, você vai embora?

Preciso expurgar você de meu corpo,
vivo ou morto.

Como arrancar você de mim,
se estou cheia de você?
Se tem farpas suas em todos os meus cantos,
em todos os meus contos,
em todos os meus versos.

Se tem restos de sua saliva na minha boca,
estrepes de você nas minhas unhas,
ódio de você infeccionando minha alma.

Como tirar você da minha vida,
se não tenho mais vida?

Quando se odeia o próprio amor,
não se quer matar
se quer é morrer(Marilda)

II

Morrer não adianta.
Cada farpa de mim
continuará em tua alma
e ainda que o fim fosse
um fato consumado
eu perduraria no teu pó
além do tempo en que fui amado.

Se tu queres ser o nó
eu serei a corda
onde está amarrado
teu ódio e tua ira
que eu chamo de amor
e alimenta o gosto
que minha boca tem provado.

Se vais me odiar até a morte
hei de matar-te toda noite
e acordar dia a dia
no teu seio acomodado(Douglas)


III

Tu mentes!
Tua mente é doente
teu beijo envenena
teus braços, algema
teu semen, praga.

Te amei com suavidade vaga,
lambi teu suor,
salguei tua carne,
mas hei de te odiar
com fúria das tempestades,
te queimar com a ira dos raios
e povoar tuas noites com pesadelos.

Quando acordares ao meu lado,
com teu corpo dolorido,
vais desejar ter morrido, bandido! (Marilda)

IV

Se digo mentiras
é por que gostas de ouvi-las
sussurradas em teu ouvido,
de costas,
enquanto minha doença te infecta
e meu veneno te cura
meus braços te prendem
e tua pele sua
untando-me de ti
iluminando raios
cantando trovões com canções
em fá sustenido
e quando eu acordar dolorido
vais me ver ao teu lado
e ao invés de bandido
dirás: - Bom dia, querido! (Douglas)

V

Então venha, desgraçado!
Me detenha, meu amado!
Arranca essa mágoa
que de mim se apossa,
extraia essa dor
que me empossa a boca
cessa o estertor
que embarga essa voz rouca.
Impeça meu grito,
minha fuga,
meu suicídio.

Te amarei por hora,
morrerei depois
com sempre foi(Marilda)

EXPONDO AS VÍSCERAS - JB do Lago


 Um olhar sobre poemas de Marilda Confortin e JB Vidal
 por João Batista do Lago

http://joaopoetadobrasil.wordpress.com/2008/08/21/expondo-as-visceras/

Tenho escrito, muito vagarosamente, uma tese sobre a coisa poética visceralista, aquilo que entendo como sendo poesia visceral; ou seja, a poesia que surge do instinto do instante (G. Bachelard) em toda a sua brutalidade fenomenal; a poesia que insurge contra verdades exatas ou absolutas, produzidas a partir de um lirismo de tipologia cartesiana ou kantiana; a poesia que se inscreve e escreve a política e a história na “carne do mundo”, onde o real se mistura à realidade, subvertendo assim a realidade dada, ajustando a poesia e o poeta ao campo de mundanidade – (Merleau-Ponty).


Evidentemente que enfoco tudo a partir de uma abordagem epistemológico-fenomenológico-existencial (se é que assim posso conceituar), partindo sempre de fenômenos imagéticos, noutras palavras, dos desenhos ou das imagens que “o texto poético” causa em mim: sou, assim, um caçador de imagens ou um arqueólogo de sombras existentes nas carnes poéticas. O que quero inferir com esta minha frase é que, não tenho quaisquer preocupações com “campos psicológicos ou psicanalíticos”. Acho-os, em verdade, representações de puro “significantes vazios”.

Neste artigo, e de forma extremamente superficial, tentarei demonstrar este arcabouço epistemológico-fenomenológico-existencial, partindo da poética de dois poetas que “caminham” por este espaço: Marilda Confortin e J.B. Vidal. Dela utilizarei a poesia “Hoje Estou Naqueles Dias…”; e dele, a poesia “Ofertório-Dor”. Ah! Como eu gostaria de ter escrito essas duas poesias! E mesmo sem tê-las escrito tenho a “impressão” que elas foram escritas por mim! E mesmo sem tê-las escrito elas estão em mim “encarnadas” com todos os seus campos de “mundanidade”, com todos os seus “pré” e “pós” políticos e históricos, me levando a cada leitura às imagens já registradas, bem assim, à criação de novas imagens a serem criadas. E é tudo que peço aos leitores: que captem as imagens contidas em ambas: Vejamo-las:

HOJE ESTOU NAQUELES DIAS…
Marilda Confortin

Dias em que o corpo
me castiga
por eu ter exercido
o poder divino
de me negar a dar à luz.

Estou naqueles dias
de terra amaldiçoada
que não fecundou
nenhuma semente
dentre as milhares
que foram plantadas.

Estou naqueles dias em que choro…
Como quando Ele se arrependeu
de nos ter dado ventres férteis
e inconseqüentes
e chorou,
chorou tanto que seu pranto
afogou todas as pragas que nasceram
nos dias que antecederam
aqueles dias de dilúvio

Hoje estou naqueles dias
em que Deus me usa
para abortar a humanidade.
Me deixe chorar, sofrer e sangrar só.


OFERTÓRIO-DOR
de jb vidal

a dor que ofereço não foi provocada
nem apascentada por mim e a solidão
veio com a chuva, c’os raios
com os anéis de saturno, na cauda do meteoro
fez poeira de lágrimas
e instalou-se nesta podridão
soube então da dor de parir
e parido fui,
da dor da fome e fome senti
da dor do sangue e o sangue correu
em minha’lma gnóstica
a dor assumiu e sobreviveu

quero então oferecer
esta dor maior que o corpo
mais que desprezo e humilhação
mais que guerras e exploração
mais que almas aleijadas
mais que humanos em farrapas degradação

ofereço a dor do amor que amei
da partida sem adeus
da saudade sem sentir
da espera inquietante
do futuro irrelevante
da ânsia divina de morrer


Convido-te agora, caro leitor, para, comigo, construir as imagens que ressaltam destas duas poesias. Mas, antes levantemos uma questão que se me parece indispensável e fundamental para a pintura deste quadro: em que ponto os dois “sujeitos” que falam na poesia cruzam e se entrecruzam nos seus caminhares? Em qual “casa” eles se “encarnam” para construírem o “equilíbrio” para poder deblaterarem suas dores? Qual a cor e a espessura da tinta que ambos utilizam para pintarem seus quadros ou simplesmente “um” quadro? Qual o enunciado dos discursos desses sujeitos? Quais “nuanças” reside entre ambos?

Resgatemos, pois, as imagens que ressaltam destas duas poesias: a) o ponto de cruzamento e entrecruzamento dos dois “sujeitos” que falam nas poesias é, exatamente, o ponto da libertação de suas dores. E com que força eles gritam essa libertação! É tanta e quanta que (penso!) nenhum ser humano escapa ou escapará das palavras vérsico-sálmicas de ambos: (Marilda) – Hoje estou naqueles dias/em que Deus me usa/para abortar a humanidade./Me deixe chorar, sofrer e sangrar só. (Vidal) – ofereço a dor do amor que amei/da partida sem adeus/da saudade sem sentir/da espera inquietante/do futuro irrelevante/da ânsia divina de morrer.

Há ou haverá sublimação maior que esta, ou seja, em que os dois “sujeitos” que falam nas poesias se oferecem como “um cristo” oriundo da mundanidade, para “abortar a humanidade (Marilda); da ânsia divina de morrer” (Vidal)? Que imagem (ou imagens?) fenomenal! Só mesmo os poetas conseguem considerar a imaginação como potência maior da natureza humana.

Mas continuemos construindo as imagens que nos sugerem os poetas. Consideremos agora a segunda questão: b) em qual “casa” eles se “encarnam” para construírem o “equilíbrio” para poder deblaterarem suas dores? Eis aqui a questão central: antes de ser “jogado no mundo”, somos “abrigados” na “casa”. Ou seja: antes de tudo – de tudo mesmo – somos “encarnados” na mundanidade das casas. Somente a “casa”, e em especial a “casa natal”, nos fornece os elementos essenciais para o processo de aprendizagem e de apreendidade do mundo. Que imagem fenomenal, caro leitor! Ao ponto de me fazer lembrar da Alegoria da Caverna, de Platão (e traçar uma analogia, aqui e agora, sobre isso tornaria este artigo muito extenso). Quem de nós, porventura, por um instante sequer, não já projetou ou projeta a “sua” casa como “campo de concentração de segurança”? Com certeza todos! Mas, qual é a “casa” dos “sujeitos” que falam nas poesias? É a casa primeira: o corpo. É no corpo que habita a poesia. É no corpo que habita o poeta. É no corpo que a poesia é encarnada. É no corpo que o poeta é encarnado.

Você, caro leitor, pode até imaginar que eu estou falando de um campo metafórico. Contudo ouso dizer-te: não! Não estou aqui me referindo a metáforas – muito embora ela se configure implicitamente -; mas à existência dos “sujeitos” das poesias que fazem (e dão) sentido; falo da existencialidade; falo do real e da realidade, desse mesmíssimo real que subverte a realidade, para ser a realidade do real: a casa-corpo no seu pleno movimento de formas que surgem a cada instante do fundo de si: (Marilda) – Dias em que o corpo me castiga; (Vidal) – Esta dor maior que o corpo. Que imagens! Que imagens! Fantásticas! Perceberam o movimento dialético dos versos que são, per se, construtores de novas imagens? Senão vejamos: (Marilda) – corpo X castigo; (Vidal) dor X corpo. Quantas imagens surgem na mente a partir dessa dicotomia dialética!

Passemos para a terceira questão proposta por mim: c) qual a cor e a espessura da tinta que ambos utilizam para pintarem seus quadros ou simplesmente “um” quadro? Muito embora fosse prudente falar dos vários quadros que poderiam ser pintados, sugiro que me acompanhem no raciocínio de apenas uma imagem. Os “sujeitos” que falam nas poesias nos sugerem quadros pintados com a cor vermelha em suas “nuanças” várias. Mas aqui podemos ressaltar (também!) que tais “nuanças” não sejam pura e tão-somente matizes figuradas. Não. A cor vermelha que sobressai da imagem que crio é sangue puro… vivo… correndo por todas as veias e saltando por todos os poros para significar uma matiz existencialista, como nos mostra esta estrofe da poesia “Ofertório-dor”, do poeta JB Vidal:

soube então da dor de parir
e parido fui,
da dor da fome e fome senti
da dor do sangue e o sangue correu
em minha’lma gnósticaa dor assumiu e sobreviveu

ou como nos diz a poeta Marilda Confortin em sua poesia “Hoje Estou Naqueles Dias…”:

Estou naqueles dias em que choro…
Como quando Ele se arrependeu
de nos ter dado ventres férteis
e inconseqüentes
e chorou,
chorou tanto que seu pranto
afogou todas as pragas que nasceram
nos dias que antecederam
aqueles dias de dilúvio

Que imagens! Que imagens! Fantásticas imagens! Fenomenais!

São imagens assim que nos remetem à inferição de Gaston Bachelard: “a Filosofia da Poesia (…) deve reconhecer que o ato poético não tem passado, pelo menos um passado próximo ao longo do qual pudéssemos acompanhar sua preparação e seu advento (…). A imagem poética não está sujeita a impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: com a explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa de ecos e já não vemos em que profundeza esses ecos vão repercutir e morrer. (…) a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. (…) a imagem poética terá uma sonoridade de ser. O poeta fala no limiar do ser. (…) a imagem poética é, com efeito, essencialmente variacional. (…) a imagem não tem necessidade de um saber (…) é uma linguagem criança. (…) Nada prepara uma imagem poética: nem a cultura, no modo literário; nem a percepção, no modo psicológico”.

Talvez pensando nessas palavras de Gaston Bachelard foi que C.-G. Jung declarara: o interesse desvia-se da obra de arte para se perder no caos inextricável dos antecedentes psicológicos, e o poeta torna-se um caso clínico , um exemplar que porta um número determinado da psychopathia sexualis. Assim, a psicanálise da obra de arte afastou-se do seu objeto, transportou o debate para um âmbito geralmente humano, que não é de forma alguma específico do artista e principalmente não tem importância para a sua arte”.

Quanto às duas últimas questões por mim propostas – Qual o enunciado dos discursos desses sujeitos? Quais “nuanças” reside entre ambos? -, caríssimos leitores, se vocês perceberem bem elas se encontram imbricadas no contexto do texto. Transformaram-se, naturalmente, em questões intertextuais.

João Batista do Lago, poeta e crítico Maranhense
Blog do João: http://joaopoetadobrasil.wordpress.com/



OVERDOSE - de Claudia Muniz



Sentado à beira da rua dei um trago em minha vida.
Injetei-me no deleite de meu corpo e na sofreguidão de meus dias.
Contei com família, nenhuma.
Ri com os amigos que não tive.
Andei de mãos dadas pela praça, com a namorada que não tinha braços.
Li e estudei, tudo que ninguém jamais ouviu.
Cantei, dancei, vivi...
E fui para um mundo sem nome.
Lá havia letreiros onde era possível ler: "Olhe dentro de você"
E fui eu! Para dentro de mim.
Passei pela cabeça e ela estava confusa,
não deixava que meus olhos vissem,
 minha boca falasse e meus ouvidos escutassem.
Desisti.
Fui para o estômago e lá me diverti.
Havia muita "beer", com bolinhas efervescentes.
No pulmão, foi impossível, nada pude ver.
Quando estava lá, fui atingido pela neblina de Cubatão.
Já estava cansado, mas, por curiosidade, quis visitar o coração.
Não foi bom! Ele estava vazio, oco, vago...
E então senti que fortes alucinações me tomavam e com elas meu corpo se retorcia.
Morri!
E foi por "overdose" de mim mesmo.

Cláudia Muniz