DIÁRIO DE LEITURA DO LIVRO “A ESTÉTICA MÁXIMA”, DO FILÓSOFO E AMIGO FAUSTO DOS SANTOS
Iniciei
a leitura desse livro às vésperas de uma longa viagem para o México. Estava participando pela segunda vez, como representante brasileira, da XX edição do Encuentro Internacional de
Mujeres Poetas em ele País de las Nubes, a
convite de Emilio Fuego, o organizador desse intercâmbio entre poetas de todos
os continentes. Eu sabia que seria a ultima vez que o veria. Emílio faleceu pouco tempo depois, vítima de
um câncer que o consumia.
Escolhi com livro de bordo “A
Estética Máxima”, do curitibano Fausto dos Santos, porque era o mais fininho
dos seus livros. Pensei que fosse fácil. Ledo engano.
Não, não é um livro de estética
facial, emagrecimento, rejuvenescimento nem decoração de ambientes. Fala de Estética
no sentido filosófico. Aquilo que se pode aprender pelos sentidos. Fausto é
filosofo e poeta. E vice-versa. E vide
versos. E o bicho pegou...
Dia anterior - Arrumando as malas
“da coisa sentida, para o sentido da coisa” – Fausto dos Santos
O carinho do vento excita as
palhas da palmeira. Ela bate insistentemente na janela do meu quarto.
Uma pomba rola fez o ninho entre
as bainhas das folhas. Os espinhos protegem dois ovinhos. Coincidência... Está chocando.
Ele abriu uma clareira entre os
espinhos,
aninhou-se em meu colo de
ouriço,
fecundou-me e partiu.
Chocou-nos.
Não posso ler esse livro agora!
Tudo faz sentido! Tenho que me concentrar na viagem. Viajo amanhã. Vou levar o
livro do Fausto para ler no avião. Espero que a rolinha fique bem e meus filhos
também.
Insônia. Preciso estar no aeroporto às cinco da madrugada. Já passam
das duas e não consigo dormir.
“Aquilo que não nasce conosco é o que de nós permanece” – Fausto dos
Santos
Quanto mais escura é a noite,
mais claramente me vejo.
Quanto mais longa é a noite, mais
tempo passo a sós com meus pensamentos.
Meus melhores pensamentos são
chocados em silêncio.
Os piores também.
Viagens longas também servem
para chocar pensamentos.
Alguns sentimentos precisam de
escuridão para se revelar.
Outros precisam de sonhos.
Nos sonhos, os sentimentos se revelam
como realmente são: Insanos.
Um amontoado de conexões sem
filtros, sem máscaras. Gosto de sonhar.
Às vezes penso que estou
sonhando acordada.
Pensar é a arte de polir
lembranças.
Algumas das minhas lembranças
estão encravadas tão profundamente
que só as enxergo em flashes
de sonhos.
Às vezes duvido que essas
lembranças sejam minhas.
Alguns sentimentos estão
cobertos por uma crosta de maus pensamentos.
É preciso um trabalho de mineração
para extrai-los.
E de ourivesaria para poli-los.
Quando eu voltar dessa viagem,
vou trabalhar nessa mina.
Vai que eu encontre um
diamante...
Voando, já. Esse livro do Fausto é faustigante.
“O sentido é algo que vem através dos sentidos” – Fausto dos Santos
Há pouco eu estava voando acima
das nuvens. Eu esperava enxergar o céu quando estivesse bem no alto. E
enxergando o céu, esperava me sentir mais perto de Deus. Que decepção! Não vejo
nada lá em cima. E nada lá em baixo. Bem
que eu desconfiava que era tudo ilusão. Na webcam do avião, só aparece um risco
preto sobre uma tela cinza. É a materialização do nada.
Meus olhos digitalizam o
invisível.
O que vejo não é o que
escrevo.
O que escrevo não é fiel ao que
sinto.
O que sinto é intraduzível.
A palavra não é confiável.
Pobre de quem confia na
poesia...
Fecho o livro.
A aeromoça pergunta se quero
beber alguma coisa.
Por favor, me traga um pouco
de pó de poesia dissolvido num copo-de-leite recém colhido.
Serve-me. As primeiras palavras
borbulham no céu da boca. Barulho de nuvem. Sabor de borboletas.
Penso palavras tenras. Sorvo-as
ainda vivas. Tão doces... Descem deslizando na saliva.
Agito o copo de leite pelo pistilo. Mudam
de cor.
Palavras framboesas. Aliás, lilases. Gasosas, superficiais.
Palavras framboesas. Aliás, lilases. Gasosas, superficiais.
Tomo outro gole. E a poesia,
nada. Preciso algo mais forte.
Peço um pouco de vidro moído.
Peço um pouco de vidro moído.
Despejo no copo. Mexo com a
língua.
Nessas horas a língua é inútil.
Não ajuda a decifrar os sentimentos.
Cuspo. Xingo. Arroto um
palavrão.
Palavras feridas veem tona: Mal
entendidas, malcriadas, mal amadas.
Adiciono adoçante. O gosto
piora.
Palavras artificiais. Mau gosto. Desgosto.
Palavras artificiais. Mau gosto. Desgosto.
Sílabas tônicas explodem a um
palmo do meu nariz.
Palavras avulsas, avultas.
E a poesia?
Nada, nada, nada nessa imensidão azul.
O tempo, preso ao relógio de
pulso do passageiro ao meu lado, passa lento. Aumenta a diferença do fuso
horário. Chegarei um ano atrasada ao
encontro deste ano. Não posso. Quero ver Emílio vivo.
Abro o livro do Fausto. Onde
eu estava? Ah! sim: Perdida no tempo dos filósofos.
Aristóteles foi aluno de Platão, que foi aluno de Sócrates. Foi isso? Fausto deve ser cria do Goethe. Se não for isso, também, que importância tem a essas alturas? Quase onze mil metros de altura, passando por uma turbulência. Se cair agora, de nada me servirá saber a ordem cronológica de Aristóteles, Platão, Sócrates, Goethe e do meu querido amigo Fausto. Ou servirá? Será a filosofia um alento para os momentos de pânico? Filósofos sofrem menos para morrer, Fausto? Você já morreu alguma vez? Ah! Quantas vezes já morri. Quanto de mim morreu e nasceu?
“A arte é um amontoado de vanilóquios que não nos levam a lugar nenhum”
Discordo Fausto. Meus vãos vanilóquios vão me levar
à Mixteca. Mixteca significa “gente das
nuvens” no idioma tu´nsavi falado por aqueles povos. Nunca imaginei que meus veros me
levassem tão longe. E vou levando os teus vanilóquios debaixo do braço. Sou bem
capaz de arrancar essa página do livro e plantar num buraquinho da pirâmide do
Sol em Teotihuacán... não se ofenda. É uma homenagem que farei a ti.
Vanilóquios....
Tua
pa
larva
arma
dilha
cor
rompe
per
ver
te
Vanilóquios... de onde você
tirou essa palavra, Fausto?
Fecho o livro e tento dormir.
Quando acordo, pensando ter
passado muito tempo, pergunto assustada ao passageiro ao lado, que horas são. Faltam
cinco horas ainda para chegar ao México.
Sem perceber, leio em voz alta
a contracapa do livro: “...em festa, não
é difícil se embriagar” . Imediatamente me
vem à mente um trecho de um poema de Baudelaire: “Pergunte que
horas são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, te responderão: É hora de
se embriagar.”
- Moça, um uísque por favor.
“Ela tinha treze anos quando
abriu a primeira universidade da sua cidadezinha, no interior de Santa
Catarina. Funcionava nas dependências de um seminário diocesano, numa área
rural, bem próxima à sua casa. Na verdade, fazia divisa com as roças da sua
família.
Ela não sabia o que era uma
universidade. Curiosa, foi até lá e começou a andar pelos corredores, espiando
as salas de aula cheias de gente adulta, bem vestida, quieta. Parecia que todos
eram tristes. Aquele ambiente era bem diferente das salas barulhentas da
escolinha pública que frequentava.
Passou por uma pesada porta de
imbuia. Estava entreaberta. Era um convite à sua curiosidade. Entrou. Parou
estupefata na frente da enorme mesa de madeira maciça coberta por vidro muito
grosso, que fingia esconder as fotos de quem morava naquela sala. Atrás da
mesa, uma imensa e ameaçadora cadeira de couro vestindo um paletó de veludo cor
de vinho. A grande cadeira intimidava duas cadeirinhas vermelhas e mudas
sentadas à sua frente. Sabia o que era se sentir humilhada, indefesa.
Penalizada, começou a defendê-las:
─ Olha aqui, Dona Cadeirona,
não brigue com minhas amiguinhas. Elas são crianças e estão aqui para aprender
e não para apanhar. A senhora é uma cadeira feia e ruim, mas, eu não tenho medo
de você. Só porque você tem rodinha... eu tenho boca, pé, mão e posso quebrar
você no meio, assim Ó!...
O diretor da universidade
entrou e ficou ouvindo aquele diálogo. Assistia perplexo aquela cena hilária da
garotinha batendo na cadeira.
─ Sabe o que vou fazer com
você, Dona Cadeirona? Vou empurrar você pra dentro daquele banheiro, trancar a
porta te deixar de castigo pra aprender a não machucar mais as cadeirinhas
menores...
O diretor da universidade deu
uma grande gargalhada e ela quase caiu de susto.
─ Ô garotinha, quem lhe deu
permissão para brincar na minha sala, com minhas cadeiras?
─ São do senhor? Todas essas
cadeiras? E aquelas lá dentro das salas de aula também?
─ Sim. Mas a minha preferida é
a Dona Cadeirona. De onde você brotou, criaturinha?
─ Ah, eu nasci lá no fim do
potreiro....”
Esse conto vai longe. Dez páginas. Pena que nunca será lido. Esse e tantos outros contos, crônicas e poemas que escrevi. Tudo bem. Foi bom escrevê-los. É o que importa.
Viva el México!
Cheguei ao México no dia dos
mortos. A maior festa popular do país. Dia primeiro é dos mortos niños. Dia
dois, dos adultos. Depois de uma semana de muita festa, tem mais uma festona
para mandar de volta aqueles mortos que se negaram a subir. É uma coisa muito
louca!
O táxi me deixou a quinhentos
metros da casa da minha amiga, a poeta Lina Zeron. As ruas estavam interditadas
para a festa. E eu, com aquela cara de turista assustada, arrastando uma bruta malona pelas calçadas irregulares de Coyoacán, cheias de caveiras, fores e
altares de oferendas.
Apesar dos mortos, sobrevivi.
A nova casa da Lina é uma mansão. Hospedou a mim e à Blanca, poeta argentina de
voz rouca que escreve muitos textos eróticos. Recebemos a lista dos compromissos que teríamos nos primeiros dias
que antecediam ao XX Encuentro Internacional de Mujeres Poetas em El país de
las nubes . Acho que não vou conseguir terminar a leitura do livro....
Não tivemos um minuto de folga.
Já na primeira noite, antes de descansar da longa viagem, fomos convidadas para
participar das comemorações do dia dos mortos na Fortaleza de Emilio Fernandez, El “Indio”, ícone do cinema mexicano da metade do
século passado (lembra do filme María Candelaria?
É dele). Ele está enterrado lá, nos jardins da sua fortaleza, imensa,
assustadora, encantadora, misteriosa, construída com pedras vulcânicas. Nos
jardins, Catrinas vestidas de Frida Kahlo,
seduzindo os visitantes. Poetas recitando calaveritas, atores, músicos
em todos os cômodos da casa enfeitados com altares, oferendas, fotos, bandeirolas, comida e bebidas que seus
mortos mais gostavam e nós comendo suas comidas, bebendo suas bebidas e fumando
cigarro sem filtro das oferendas à Frida....
Sem dormir a mais de quarenta horas,
eu estava me sentindo uma verdadeira Catrina, ou melhor, não estava sentindo mais nada. Estava
literalmente morta de cansaço. Sem
leitura essa noite, Fausto.
Nos dias seguintes, ainda em
comemoração aos mortos, ganhei dois presentes personalizados: Uma calaverita e uma sobremesa exótica: Uma tumba
feita de bolacha com calda de framboesa e na lápide, meu nome escrito com chocolate.
A calaverita
“La Catrina no se harta de llevarse a las
personas,
por eso cuando le faltan va a buscar en otros
lados,
y se mete en los océanos a llevarse los
pescados
y como sigue con ganas de seguir haciendo asi,
ahora tambien se lleva enredada entre sus redes
a poeta Marilda Confortin!”
Diante de uma pedra, múltiplas
são as possibilidades, diz Fausto. Ignorar, desviar, contemplar, analisar,
chutar, manipular, colocar a pedra no sapato, atirar a pedra em alguém. E ele tece
um capítulo inteiro sobre o sentido das pedras no meio do caminho. Só sei de
uma coisa. As pedras do Drummond e do Fausto são muito abstratas se comparadas
às minhas. A pedra que encontrei no meu caminho não era uma pedra qualquer. Não
era só uma pedra. Não era uma pedra só. Eram milhares de pedras empilhadas só Deus
sabe como, formando cidades de pedras. Impossível ignorar as pedras deTeotihuacán
e de Monte Alban. Impossível desviar das pedras de Teotihuacán e de Monte Alban.
Impossível pegar, chutar ou atirar as pedras de Teotihuacán e de Monte Alban.
Eu disse que arrancaria a
página dos “vanilóquios” do Fauto e enfiaria num buraquinho das pirâmides. Pra
sorte dele, esqueci de levar o livro no passeio. Mas, escrevi seu nome num
pedaço de guardanapo e enfiei discretamente numa das fendas das ruinas de Monte
Albán, considerado o ponto de fusão de todas as energias e onde aflora a
“consciência de ser” da mãe terra.
Das possibilidades que Fausto me
sugeriu no livro quanto falou das pedras, só uma foi possível: Parei e fiquei
contemplando extasiada as pedras que formam as pirâmides de Teotihuacán e as ruínas
de Monte Alban. Agora, nesse lugar, seria hora de eu falar sobre o fim do
mundo. Eu não me importaria de morrer
aqui, entre as pedras carregadas pelos Zapotecas e Mixtecas.
Mas não vou morrer agora. Em
Oaxaca, hospedei-me na casa de uma velha senhora, descendente dos mixtecas, que
me ensinou a comer gafanhotos fritos. Ela me disse que o mundo não vai acabar
dia 21 de dezembro, não. Será dia 23.
Ufa! Que alívio! Ganhei mais dois dias de vida.
Já Jesus, marido da minha
amiga Lina, que é um engenheiro especialista em abalos sísmicos, disse que há
uma probabilidade do mundo acabar para muitas pessoas durante esses dias ou até
em 2015, pois há previsão de se repetir o grande terremoto de 85.
E o que dizia o filósofo Aristóteles sobre os terremotos em seu
tratado meteorológico, meu caro Fausto?
Falando em Jesus, tive minha
primeira experiência com abalo sísmico. Acordei numa madrugada com a cama
tremendo, os vidros das janelas e portas do banheiro batendo. Gritei por Jesus.
Ele mandou que eu voltasse a dormir pois era um tremor pequeno, de uns 5 e pouco,
no máximo. A casa aguenta até 8, disse
ele sem dar a menor importância. Jesus!
Eu não consegui mais dormir.
Aproveitei para terminar a
leitura da “Estética Máxima”. É livro pra se ler sem interrupção de terremotos
e sem a expectativa o fim do mundo. Livro pra entrar no looping da lógica,
acompanhar a conjunção. Não é um livro fácil, mas, é um livro muito, envolvente.
O Fausto tem razão: “O sentido é algo que vem através dos sentidos”. Preciso
desenvolver mais os sentidos para reler e apreciar com mais serenidade e
inteligência tudo o que ele escreveu.
Depois de um mês de maratona poética em vários estados mexicanos, retornei ao
meu lar doce lar. Tudo estava no lugar graças aos deuses.
No ninho da pombinha, dois
filhotinhos de rola esperavam pela mãe. No meu ninho, meus dois filhotões terrivelmente
humanos, me esperavam com a boquinha aberta:
─Trouxe tequila mãe?
─Trouxe tequila mãe?
Que bom que o mundo não acabou.