VÉSPERA - de Manoel de Andrade



Quatorze de março
mil novecentos e sessenta e nove.
É preciso…
é imprescindível denunciar o compasso ameaçador destas horas,
descrever esta porta estreita que atravesso,
esta noite que me escorre numa ampulheta de pressentimentos.

Um desespero impessoal e sinistro paira sobre as horas…
O ano se curva sob um tempo que me esmaga
porque esmaga a pátria inteira…

Nossas canções silenciadas
nossos sonhos escondidos
nossas vidas patrulhadas
nossos punhos algemados
nossas almas devassadas.

Pelos ecos rastreados dos meus versos
chegam os  pretorianos  do regime.
Alguém já foi detido, interrogado,  ameaçado
e por isso é necessário antecipar a madrugada.

E eis porque esse canto já nasce amordaçado
porque surge no limiar do pânico.
Meu testemunho é hoje  um grito clandestino
meus versos não conhecem a luz da liberdade
nascem  iluminados pelo archote da esperança
para se esconderem na silenciosa penumbra das gavetas.

Escrevo numa página velada pelo tempo
e num distante amanhecer
é que o meu canto irá florescer.
                                                              
Escrevo num horizonte longínquo e libertário
e num tempo a ser anunciado pelo hino dos sobreviventes.
Escrevo para um dia em que os crimes destes anos puderem ser contados
para o dia em que o banco dos réus estiver ocupado pelos torturadores

Contudo, nesta hora, neste agora
o tempo se reparte pra quem parte
e um coração se parte nos corações que ficam…
O amanhecer caminha para desterrar os nossos gestos 
para separar  nossas  mãos  e  nossos olhos
e nesta eternidade para pressentir o que me espera
já não há mais tempo para dizer quanto quisera.

Tudo é uma amarga despedida nesta longa madrugada
e neste descompassado palpitar,
contemplo meus livros perfilados de tristeza
retratos silenciosos de tantas utopias,
bússolas, faróis, retalhos da beleza.
Aceno a Cervantes, a Lorca, a Maiakovski
mas só Whitman seguirá comigo
nas suas páginas de relva
e no seu canto democrático.
Contemplo ainda os pedaços do meu mundo
nos amigos do penúltimo momento
nas lágrimas de um benquerer
na infância de minha filha
e nesse beijo de adeus em sua inocência adormecida.

Nesta agonia…
neste abismo de incertezas…
abre-se o itinerário clandestino dos meus passos.
De todos os caminhos
resta-me uma rota de fuga, outras fronteiras e um destino.
Das trincheiras escavadas e dos meus sonhos,
restou uma bandeira escondida no sacrário da alma
e no coração…
um passaporte  chamado…  liberdade.

                                           Curitiba, 14 de março de 1969
Manoel de Andrade

Pérolas do Poetrix


PÉROLAS

Doa-se

coração adestrado
com pedigree, vacinado
só não obedece ao dono
(Lilian Maial)

L-i-m-í-t-r-o-f-e

um que em mim
muito mal localizado
entre o fundo do poço e o olho do tornado
(Aila Magalhães)

Bumerangue

eu voto
tu votas
eles voltam
(Angela Bretas)

Cordeiro da deusa

sob o cutelo
ofereço meu corpo aos teus desejos
- tira o pecado do mundo!
(Goulart Gomes)

Poetrix


Postar nosso lixo eletrônico na internet
pode salvar árvores.
Mas, quem nos salvará do lixo eletrônico?

COMÉ QUE FICA MEU PREJUÍZO?


(Da série: “histórias secretas de amigos e inimigos” – por Marilda Confortin, com a co-autoria e cumplicidade dos personagens principais)


Encostados no balcão da lanchonete da rodoferroviária de Curitiba, os dois amigos tomavam café da manhã. Trabalhavam na redondeza e se divertiam ouvindo trechos de conversas de pessoas desconhecidas que passavam pela estação. Quando o ônibus partia, se alguma mulher olhasse pela janela, os dois acenavam, jogavam beijos para a estranha e não raramente faziam gestos obscenos ou gritavam frases como: “- Não me abandone, meu amor! Volte para nossos filhos! Por favor não se vá” ou ´pior “ Vai... vai embora sua piranha! Cadela sem vergonha! Vai viver com seu amante, vagabunda!”.

A infeliz fechava a janela constrangida enquanto os outros passageiros abriam a janela para ver e ouvir o que eles gritavam.  

Outra diversão dos dois amigos era inventar diálogos a partir de uma frase que ouviam nas despedidas, colocando-a num contexto que não tinha nada a ver com a conversa.
 
Naquele dia, por exemplo, uma senhora cuja saia farta e florida entrava incomodamente nas nádegas também fartas, embarcou no ônibus da Reunidas e despediu-se de um homem mais jovem, dizendo “... e faça o que eu mandei!”. Um deles pegou daí e emendou: “Pode deixar, sua velha desgraçada. Vou encher sua filha de porrada”. E o outro complementou: “Ai benzinho, bate mais, assim, isso, mais, mais, gosotosão!”  

O viajante encostado no balcão da lanchonete, esperando um misto frio e um pingado, olhou para os dois marmanjos e balançou a cabeça, inconformado com aquela brincadeira de mau gosto.  

O lanche do viajante chegou. O sujeito deu uma mordida, mastigou, fez uma expressão de quem está experimentando um sabor inesperado e olhou intrigado para o sanduíche.  Tomou um gole do pingado, deu uma abocanhada maior, mastigou, mastigou, franziu a testa, mordeu de novo, engoliu e olhou interrogativo para o lanche.  Repetiu isso várias vezes, até restar somente um terço do pão.

─  Moça, não tem queijo aqui nesse misto!

A garçonete pegou o resto do sanduíche que sobrou na mão dele, abriu-o e constatou que não tinha queijo. Mostrou para as outras moças. Cochichou no ouvido da amiga, dizendo que talvez o sujeito já tivesse comido todo o queijo. Uma delas cheirou o sanduíche e confirmou: “não tem cheiro de queijo”. A outra sugeriu dar uma fatia de queijo para o freguês ficar quieto.

─  Não quero uma fatia de queijo. Eu pedi um misto: pão, presunto e queijo. Entendeu?

A moça, tentando evitar discussões constrangedoras, lhe ofereceu mais um misto frio de graça.
 
─ Não quero outro! Quero o que pedi! Comé que fica meu prejuízo?

Sem saber o que fazer, a garçonete chamou o gerente, explicando a situação. Ele propôs descontar o valor da fatia de queijo. O passageiro descontente e indignado retrucou:  

─ Não quero desconto. Fui enganado. Quero saber comé que fica meu prejuízo! Você não entende?

O gerente tentou acalmá-lo propondo devolver todo o dinheiro que pagara pelo sanduíche.

─ Não quero dinheiro!  Você não entende? Você não pode me devolver o que nunca lhe emprestei. Você não pode me dar o que nunca teve. Você não pode desfazer o que nunca fez. Você não pode fazer nada.  Eu só quero saber comé que fica meu prejuízo?  

Os dois amigos pagaram a conta e voltaram para o trabalho calados. Aquele trecho de conversa ficou martelando em seus pensamentos como prego em suas carnes.   

Como é que fica meu prejuízo? Quem vai restituir o apetite depois de enganada a fome?  Como preencher a falta do que nunca existiu? Como explicar a presença da ausência?  Como cobrar uma dívida se não há devedor? O que dizer para alguém que passou dois terços da vida esperando encontrar sua “fatia de queijo” que nuca existiu?  Quem vai me ressarcir o tempo, o gosto, a vontade, o prazer, a fome? Quem? Como é que fica meu prejuízo?  Você me entende?

Entre uma planilha e outra...

MARIA MARILDA
Por Mara

ESSA MARIA QUE EU NEM SABIA
QUE ERA MARILDA,
QUE UM DIA POR CAUSA DE UMA PLANILHA,
QUE IRONIA,
ME ACOLHEU AO SEU LADO COM ALEGRIA.

O TEMPO PASSOU E EU  NEM SABIA,
QUE UM DIA SENTARIA COM ESSA MARIA
PRA OUVIR SUA POESIA.

Um abraço,
Mara

Mara, a pessoa mais séria da equipe. Poucas palavras e muito trabalho. Não frequentava os bares nem gostava das interferências poéticas que eu e Daniel fazíamos em pleno expediente, pra relaxar. Nunca imaginei ela escrevendo um poema para mim. Que baita surpresa. Que alegria, Mara. Obrigada.

Adega fechada

Já não vou às vinhas. Vou às favas. Vagem seca, Vago vaga, vadia, vã. Tens podado as vinhas? Brotam brotos? Cachos? Galhos? Uvas? Minha reserva acabou. Adega fechada, vindima falida, falo nada. Bons tempos aqueles de tira-gostos queijos, beijos, vinhos, rostos rimas. Ríamos muito, lembra?

Não vou dizer

Não vou te dizer
o que deves vestir
ou despir ao me encontrar.
Nem te contar
a que vim,
o que fui,
onde andei,
o que vi
ou que vinho
deves servir no jantar.
Não quero
que me sirvas
como um servo cego
serve ao seu rei nu.
Teu reino não me seduz.
Só quero que saibas
que hoje,
eu caibo no ponto final
de tua interrogação,
no ápice de tua descrença,
no momento exato
de nossa breve existência,
no espaço vazio
dessa noite pagã.
Hoje,
serei o silêncio
de tuas reticências,
a ausência
de palavras inúteis,
a omissão
das fúteis promessas
e o motivo da tua falta de pressa
em acordar,
amanhã.