Poetrix, um terceto que nasceu no Brasil - por Mariana Braga



Há duas semanas, fui procurada por Mariana Braga, repórter do Jornal Comunicação da Universidade Federal do Paraná.  Queria conhecer o Poetrix,  Não nos conhecíamos. Marcamos na frente da sala de empréstimos da Biblioteca Pública. Fazia um frio inesperado como só Curitiba sabe fazer.

Estudantes alegres, cobertos por casacos largos e cachecóis coloridos, amarrados com nós criativos, entravam e saíam da Biblioteca aos pares, trios, montes, tropeçando em mim, sem me ver.
Senti saudades de quando eu freqüentava a Biblioteca Pública e também achava que o mundo era só meu e de quem estivesse comigo naquele instante.

- Mariana? 
- Marilda?

Sim, éramos nós.  Escolhemos uma mesa e conversamos muito, sem pressa. Seus olhos brilhantes e curiosos lembravam o olhar de meus filhos, pequenos, quando eu lhes contava uma história nova. Ela ainda não estava contaminada pela pressa dos jornalistas, pela limitação das laudas, pelos cronogramas e pelas matérias encomendadas. Ela escolheu escrever uma matéria sobre Poetrix. Uma poesia nova. Uma nova história. Que maravilha! E ainda melhor: Disse-me que faria um “tubo de ensaio”. Imaginei uma sementinha de poesia germinando dentro de um tubinho de vidro, crescendo, espreguiçando-se como um pé de feijão, sob o olhar deslumbrado de uma criança. É isso que ela faria. Depois de reunir a informação necessária, ela mesma se submeteria à experiência de produzir poetrix e contar aos outros quais foram suas dificuldades, facilidades, sensações e emoções. Mariana revelou-se uma poetrixta. Leiam abaixo a matéria e o resultado do "tubo de ensaio".

A partir daqui, o texto é dela. Obrigada, Mariana por  nos presentear com essa experiência.  


Poetrix, um terceto que nasceu no Brasil

Gênero poético tem apenas uma década e é muitas vezes chamado de "filho bastardo" do Haicai

Reportagem: Mariana Braga
Edição: Carolina Goetten 
matéria publicada em 19/05/2010 (disponível nos arquivos da UFPR):
http://www.jornalcomunicacao.ufpr.br/node/8208

              

sol cores e flores
na Festa da Primavera
saia da menina
(Débora Novaes de Castro)


Al dente 
 
Não há futuro ao ponto
Quando o presente
É mal passado
(Marilda Confortin)

 
À primeira vista, um leitor disperso incluiria os dois tercetos acima no mesmo tipo de classificação, pela forma aparentemente semelhante como foram construídos graficamente. Mas basta uma reflexão um pouco mais atenta para notar distinções essenciais nos poemas, que são enquadrados em gêneros diferentes de poesia: Haicai e Poetrix, respectivamente.

“O Haicai é um terceto estruturado há milhares de anos e tem formatação de 5-7-5, com no máximo 17 sílabas poéticas”, descreve a poeta Marilda Confortin, membro do Movimento Internacional Poetrix. A métrica 5-7-5 correlaciona versos e sílabas: o primeiro verso, no haicai, deve ter cinco sílabas poéticas, seguido de um segundo com sete e o terceiro, conclusivo, com cinco. Dentro da categoria minimalista, o Poetrix não pode ultrapassar 30 sílabas poéticas, mas não determina normas para a distribuição destas sílabas dentro do poema. “O objetivo é dizer muito com o mínimo de palavras”, explica Marilda.

A partir desse entendimento, os tercetos de Paulo Leminski, por exemplo, são erroneamente chamados de haicais, porque a essência do gênero poético milenar, oriental e de métrica rigorosa não era seguida à risca. No artigo "Poetrix: um jeito brasileiro de fazer tercetos", a escritora Lilian Maial explica que o haicai se consagrou como poema descritivo: enquanto tal, costuma identificar a estação do ano – no Japão, chamada de kigo – em que acontece o momento retratado nos versos.

Outras diferenças
A poeta Kathleen Lessa explica algumas diferenças fundamentais entre as duas vertentes poéticas.

Quanto ao tema

O haicai versa sobre a natureza: estações do ano, flores, frutos, animais, tempo, clima, mudanças, etc. Ele “acontece” no momento em que é escrito. É como um flash fotográfico, apresentando a inspiração que o autor captou ao observar uma cena, obrigatoriamente no tempo presente.
O poetrix tem temática livre e pode acontecer no passado, presente ou futuro 

 
 
Quanto ao narrador

No haikai, o autor não interfere na ação. Só observa e narra o momento
No poetrix o autor pode aparecer, interferir, falar de si, expor sentimentos.

Quanto às rimas

No haicai tradicional, a rima não é admitida (a menos que seja interna, no verso);
No poetrix, a rima é opcional.

Ao contrário do Poetrix, que instiga, o haicai não deve deixar dúvidas para o leitor. Segundo Marilda, é um terceto contemplativo. “Se ele diz que as folhas estão no chão, elas realmente estão no chão”, assinala a escritora. “O poetrix é mais nosso. É mais livre”.

Os tercetos tropicais foram organizados pelo poeta baiano Goulart Gomes no gênero Poetrix. Marilda explica que o novo gênero de terceto, criado em 1999, admite ironia, metáforas, neologismo e estrangeirismo, não aceitos em haicais, além de ser urbano e atemporal. A etimologia deriva de Poe (poesia) e Trix (três).

Ter definido um novo gênero de terceto não significa que existe uma guerra entre haicaístas e poetrixitas. “Nós não somos uma frente de combate ao haicai. Temos muito respeito. O poetrix é um terceto que resolveu assumir sua diferença e não ficar brigando”, assinala a poeta.

Existem outros detalhes que distinguem os dois tipos poemas. O haicai não admite título, enquanto este é muitas vezes um complemento do Poetrix. “Ele [o poetrix] conversa muito com todas as mídias”, ressalta Marilda.

 O mínimo é o máximo

Pelas figuras de linguagem e pluralidade de sentidos, não basta que alguém leia um poetrix em voz alta para outra pessoa. Muitas vezes o terceto lança mão de jogos de palavras que só podem ser compreendidos através da leitura, como no caso do poema (con)tato, de Marilda Confortin:

(con)tato

dedilho improvisos
 teu corpo jaz(z)ido
 acorda blues

A nova vertente poética conquista cada vez mais adeptos. O Poetrix já fez surgir mais de cem mil poemas na internet, realiza prêmios às melhores poesias e começa a se tornar referência literária no Brasil e no mundo. Nos versos, trabalha-se a intensidade literária, os termos non-sense, a crítica, o erotismo, a intertextualidade - o máximo de conteúdo em até 30 sílabas poéticas.

Movimento Poetrix

“O hai-kai é uma pérola; o poetrix é uma pílula”. É assim que o coordenador do Movimento Internacional Poetrix (MIP), Goulart Gomes, distingue o recente gênero de poesia. Ele explica na Bula Poetrix que esse tipo de poema é "um projétil em direção ao alvo”.

A Bula (uma espécie de beabá Poetrix) surgiu depois de a novidade confundir alguns leitores e poetas que pediram por uma organização das regras estruturais do gênero de poema. Além da regulamentação das características que devem estar presentes no Poetrix, Goulart Gomes lançou O MIP, que surgiu em 2000 e tem o objetivo de divulgar os poemas e seus autores.

Goulart é professor, mestre e doutor em Literatura e autor premiado. Mas embora o fundador do movimento seja envolvido com ambiente acadêmico, isso não é regra entre os poetrixistas: o Poetrix é arte de qualquer profissão. “Existem professores, mas também médicos. Eu sou analista de sistemas”, conta Marilda Confortin. Para ela, poesia é para todos os bons leitores. Alguns desses poetrixistas possuem poemas publicados nas antologias Poetrix, que ano passado chegou à 3ª edição.

O Poetrix já é rebelde por sua própria essência, e dentre os próprios poetrixistas houve quem se manifestou para ampliar as características do poema, que são aceitas pelo MIP. Carlos Fiore criou o Tautotrix, baseado no tautograma. Ou seja, é um Poetrix que se utiliza de palavras que começam pela mesma letra:

Pulsação

Podem pintar poemas,
Prosas, poesias, palavras.
Pessoas pensam. Pulsam.

Existem outras formas múltiplas desse gênero de poema, como o Duplix criado por Pedro Cardoso e Tê Soares, que apresenta dois Poetrix se entrelaçando através da intertextualidade.


A experiência da repórter Mariana Braga como poeta 
no Universo Poetrix (Tubo de Ensaio)

 

Poetrixando na prática

A sensação de construir versos no formato Poetrix é tão instigante quanto a de lê-los

Poetrixar
Mariana Braga

eu (ar)risco versos
mas algumas palavras f o   g     e          m
perdem-se nas inspirações

Sentei-me à escrivaninha para escrever meus próprios Poetrix, após conversar com a poeta Marilda Confortin na Biblioteca Pública do Paraná e ler Lua Caolha, sua coletânea de poemas do estilo. O amor com que ela se referia ao Poetrix me cativou. Ao folhear diversos livros e arrastar a barra de rolagem de incontáveis sites sobre a vertente poética, fiquei fascinada com os efeitos que esses pequeninos tercetos atingem. Foi quase viciante. Lia um e corria para outro, enquanto algumas ideias me surgiam à mente.

Achei que minha missão seria dizer muito com poucas palavras, mas colocar sentimentos em apenas três versos não é o mais difícil. Poetrix exige muito além da palavra em si. E, pequeno, lança mão de uma linguagem na sua maior intensidade e clama por ousadia ao utilizar todas as ferramentas linguísticas possíveis.

Por ser recente, alimenta-se de todas as mídias, como explica Marilda. Procurei aplicar aos meus poemas imagens que representassem na maior dimensão possível os meus sentimentos ou interpretações. Às vezes, podem aparecer imagens ou sons. Mas boa parte dos poetrix apresentam letras entre parênteses ou mudanças sutis no texto para explorar o sentido da palavra. Utilizei em um poetrix a mudança de tamanho da fonte:

Cidade sou riso?

esconde o sol na manga
o curitibano
frio

Nesse poema, registrei uma impressão que tive ao passear pela Rua XV em uma cinzenta manhã de sábado. Apesar de descrever aquele momento em meu próprio Poetrix, o sentimento narrado é atemporal, aplicável a diversas ocasiões. Caso eu quisesse produzir um haicai, eu talvez não pudesse dar à palavra “frio” mais de um sentido, trazer-lhe ambiguidades e confusões e misturas de significados. "Frio" significaria apenas o registro de tempo e estação do ano e não poderia indicar, ao mesmo tempo, a característica de um personagem. Meu poema ficaria incompleto.

“Quanto mais se extrair de uma palavra tudo aquilo que ela foi feita para dizer, melhor. Sempre tem duplo, triplo, quádruplo sentido". É o que Marilda chama de "privilegiar a inteligência do leitor", que não pode ganhar tudo de bandeja, já pronto. "Queremos que ele mastigue, engula, faça a digestão”.

A estrutura do poema permite a inovação, as aventuras, apostas, riscos, jogos. O título, que não entra na contagem de limite de sílabas métricas, pode interagir com o Poetrix. Em vez de usar a palavra mar em um deles, escrevi As três primeiras letras do meu nome, o que significa que, além de referir-me ao próprio mar, discorro sobre algo que faz parte de mim de uma forma especial.

As três primeiras letras do meu nome

Poesia embalada pela brisa
Água e sal que tem graça
Ah-mar!

Esse Poetrix foi inspirado em um texto que escrevi há alguns meses, constituído por três parágrafos por onde se distribuíam 1.283 caracteres. Sua essência não se perdeu por ter de se apertar em apenas três versos: o que eu queria transmitir de mais importante naquele texto ganhou evidência no formato Poetrix.

Fiz isso porque Marilda me recomendou sintetizar textos ou matérias jornalísticas através do Poetrix. Ela costumava criar poemas para resumir relatórios prolixos. “Estamos em um mundo sem tempo para grandes leituras”, constata a poetrixista. Além de o Poetrix contribuir para facilitar a criação de textos resumidos, é uma saída para quem tem o fator "pouco tempo" como pretexto para a falta de leitura.

Mas, para quem escreve, o melhor parece ser encontrar termos polissêmicos, ironias e jogos de palavras do cotidiano que caibam bem ao papel. Depois de ensaiar alguns Poetrix, meus sentidos estão mais atentos. Poetrixar é a atividade de deliciar-se com tudo o que se vê, ouve e sente. Por isso, eu parafraseio Goulart Gomes: Haicai é uma bela fotografia, mas Poetrix… Poetrix é um delicioso chocolate.


Grafitrix Contato

Poesia Arrependimento



Arrependimento


Foi tardio aquele medo
aquele arrepio
que percorreu minha espinha
e aquele suor frio
que escorreu pelo braço.

Na garganta um “que é que eu faço?”
entalou,
engasgou,
saiu resmungo,
ninguém neste mundo
poderia entender.

Porém,
tardia também saia tua voz
quando entre nós
jazia a nudez

e uma vez feito
nada arrancava do peito
aquele vão

nem minha mão leve,
nem teu tom breve
e macio de falar
quão tardio foi amar.

(Marilda Confortin)

Poesia Insenatez

In sensa tez


Posso até ver tua tez tensa
por detrás das letras impressas
e ouvir o silêncio das reticências
das palavras presas na garganta.

Renuncias até a ofensa.

O esforço de amar já não compensa...
Começar tudo de novo
dá uma preguiça... não é?

É.... Pra quem sabe de cor a missa
Já não há mais surpresa na fé.

Um acordo com a Poesia


Façamos um trato:
Chega de maus tratos.
Estamos sempre por um triz
e nunca gozamos.
Libertemo-nos.

Eu escolho o lugar
e tu o clima.
Entro com o vinho
Tu, com a rima.

Tanto faz:
Na tua casa
ou na minha.

Sejamos voyeur um do outro.

Tu escolhes minhas companhias,
eu as tuas.
Entras com a lua,
eu te faço festa.

Espiaremo-nos pelas frestas.

Seremos complacentes
com crianças e adolescentes,
mas exigiremos o máximo
dos boêmios e dos clássicos.

Então tá, minha musa:
Eu te uso, tu me usas.
Estamos livres
pra (na)morar outros livros
e desaguar em qualquer mar.

(marilda confortin)

Poesia Dolorosa lembrança


Pensar em você
é me saber vinho
lembrando tempos de uva
esmagada sob seus pés.

É me saber trigo,
pressentindo o calor do forno
queimando-me pão.

É me sentir homem,
segurando o gozo,
temeroso do retorno ao útero.

É conter o orgasmo,
prevendo a dor do aborto.

Pensar em você
é sentir um vazio imensurável
como se Deus, por um momento,
duvidasse de sua própria existência.

(marilda confortin)

Cuca: Intérprete curitibano foi-se...

CUCA - cantando nosso samba triste e sem nome

Se foi nosso Cuca... que tristeza.  Faleceu nos primeiros dias de maio de 2010. Era um dos melhores  cantores da  noite Curitibana.

Tantos anos ouvindo-o e eu nunca falei seu nome completo.... só o apelido: "CUCA". Ele cuidava de mim nas noites de boemia. Conhecia todos os malandros de Curitiba e se um deles se aproximasse, ele já vinha pra me salvar. 

Cuca nem precisava de instrumentos musicais para acompanhar. Era dono de um vozeirão capaz de calar até os faladores mais  compulsivo dos bares.

Além da saudade, comigo ficou apenas uma fotografia de uma "quinta dos infernos" lá no Villa das Artes onde cantou nos últimos anos e uma gravação caseira de um samba triste e sem nome, composto  por mim, pelo Marco Guiraud (meu marido, também faleceu em fevereiro deste ano),  e pelo s parceiros Washington e Clio Abreu. Fizemos muitas músicas juntos. Chamávamos essa parceria de "5 mares e um rio".  Mas esse é o samba mais triste que compusemos... tão triste que nem nome tem. Até me dá vontade de chorar. Cuca queria gravar essa música. Gravou, mas, só na minha memória e dos parceiros dessa composição. É... Está sendo um ano de muitas perdas esse tal de 2010..

Posto aqui esse samba, como um réquiem  para o Marco e para o Cuca.

SAMBA TRISTE E SEM NOME
Autores: Marco Guiraud, Marilda Marilda Confortin, Washington e Clio Abreu
Intérprete: Cuca


Nada para mim traz alegria
hoje foi só mais um dia
sem flores no meu jardim
sigo tão tristonho meu caminho
só restou aquele espinho
de um amor que teve fim

a esperança é a última a morrer
mas, para sobreviver
quanto ela se transforma!

eu sonhei amor mais que perfeito
que ironia - o meu peito
com migalhas se conforma


Garotinha, sempre garotinha



Por Marilda Confortin e Tonicato Miranda
Marluci tinha treze anos quando abriu uma universidade numa área rural da cidade, perto de sua casa. Bicho do mato, curiosa, foi até lá, andou pelos corredores, espiou as salas de aula cheias de adultos bem vestidos e comportados. Todos os móveis eram novos e bonitos. Bem diferente do ambiente pobre da escolinha pública que frequentava.
Uma das portas estava semi-aberta. Entrou. Parou estupefata na frente da enorme mesa de imbuia maciça. Atrás da mesa havia uma imensa e ameaçadora cadeira de couro escuro vestindo um paletó cor de vinho. A grande cadeira intimidava duas cadeirinhas vermelhas encolhidas em frente à mesa. A garotinha partiu em defesa das duas:
Olha aqui, Dona Cadeirona, não brigue com as cadeirinhas. Elas são criancinhas ainda e estão aqui na escola pra aprender e não pra apanhar. A senhora é uma cadeirona feia e má! Eu não tenho medo de você! Não tenho rodinha, mas tenho boca, pé, mão e vou quebrar você no meio assim Ó!...
O diretor da universidade, retornando à sua sala,  parou na porta e ficou assistindo aquela cena hilária da garotinha batendo na sua cadeira.
─ Sabe o que vou fazer com você, Dona Cadeirona? Vou trancar você naquele banheiro e você vai ficar de castigo até aprender a não maltratar as cadeirinhas menores...
O homem deu uma grande gargalhada e a menina caiu no chão assustada.
─ Ô garotinha, quem lhe deu permissão para brincar na minha sala com minhas cadeiras?
─ São do senhor? Todas estas cadeiras?  
─ Sim. Mas a minha preferida é a Dona Cadeirona. De onde você saiu, criaturinha?
─ Ah, eu moro aqui perto, na roça. Tem alguma coisa pra eu fazer aqui nessa tal de universidade?  
─ Hummmm...  Você sabe fazer café? 
─ Sei!  – respondeu, Marluci.
Mentira. Nunca fizera café. Em sua casa só se tomava chá de erva mate com leite. Mandou-a fazer um cafezinho bem forte. Se ficasse do jeito que ele gostava, lhe daria um emprego.
Saiu feliz e saltitante. Na cozinha deparou-se com um fogão a gás. Um monstro. Não tinha fogão a gás em sua casa. Não sabia usá-lo. Caiu num choro compulsivo. Um professor apareceu na cozinha para tomar água. Penalizado, ensinou-a usar o fogão e fazer café. Equilibrando a bandeja, deslumbrada com as “xicrinhas” que pareciam brinquedo de criança rica, chegou à sala do diretor. Mais da metade do café já derramara.
O diretor disse que ela não servia para fazer nem para servir café e mandou-a embora. A garotinha se agarrou na perna do homem e começou a chorar novamente. Como ela não arredava o pé nem largava sua perna, perguntou se ela sabia usar um espanador. Pela expressão nos olhos arregalados, não sabia nem o que era um espanador, aquela menina.  Pegou sua mãozinha e conduzi-a pelos corredores da universidade em direção à biblioteca. Ela engoliu o choro rapidamente, restando apenas um soluço.
Marluci era uma coloninha muito miúda e ingênua. Parecia ter menos de dez anos. Vestia um calção de chita florido com elástico nas pernas. Nos pés, uma alpargata azul-marinho, bordada com miçangas coloridas. Camiseta branca, surrada, com o símbolo de uma escola municipal bordado na altura do peito. Cabelos muito brancos e lisos acima dos ombros, franjas cortadas retas. Enxugava com raiva as incômodas lágrimas usando as costas das mãos encardidas.
Chegando à biblioteca, paralisou. Nunca vira uma sala habitada por livros. Não teve coragem de entrar.
─ É aqui. – disse o diretor, empurrando-a para dentro da biblioteca. Tire todos os livros daquelas estantes, espane e coloque-os de volta, na mesma ordem. Volto mais tarde para ver se você merece o emprego.
Demorou a tarde inteira e só espanou a primeira prateleira das dez estantes. Começou justamente pela prateleira dos livros de filosofia. No fim da tarde o diretor flagrou-a imersa, sentada no chão, lendo “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche. Arrancou o livro da sua mão e gritou:
─ Eu mandei você tirar o pó, e não ler os livros! Você não pode mais vir aqui. Não é ambiente para crianças. 
Aquele professor caiu do céu novamente. Interferiu dizendo ao diretor que podia deixá-la sob sua responsabilidade. Ele ensinaria o trabalho e ficaria de olho nela.
A biblioteca foi seu primeiro emprego. Os livros, sua primeira paixão.
A segunda paixão foi Renato, o bendito professor de Química que sempre aparecia para salvá-la das encrencas. Ele tinha 25 anos e ela 13. Aos 14 ele a ensinou beijar na boca. Aos 15, ela apaixonou-se por Demian, um personagem de Herman Hesse. Aos 16 ela agrediu a tapas e ponta pés a esposa do diretor da universidade porque a flagrou se insinuando para o seu querido professor.
Foi sumariamente demitida. Mas o professor a socorreu novamente. Contratou-a como auxiliar em seu escritório. Assumiram o namoro para espanto daquela pequena e preconceituosa cidade. Ele era descendente de negros, nascido em Recife, tocava o “Anônimo Veneziano” no piano e recitava poemas de Augusto dos Anjos. Deu o primeiro e único livro infantil que Marluci ganhou na vida: “O Pequeno Príncipe”. Ensinou-a amar “Os Beatles” e “Os Rolling Stones”. Apresentou-a aos clássicos da literatura e da música. Ensinou-a tocar “O Bife” no piano e riam como duas crianças. Era cabeludo, fumava, tomava whisky e tinha a maior motocicleta da cidade. Era fiel, carinhoso e a mantinha virgem, pura de corpo e mente. Casariam quando ela atingisse a maioridade, dizia ele.
Quando completou dezoito anos, levou-a para um passeio até um recanto florido às margens do rio Uruguai.  Depois de muito beijá-la colocou uma linda aliança de noivado em seu dedo e disse que precisava confessar um segredo. Falou que era homossexual e que não poderia casar com ela, apesar de amá-la mais que tudo na vida.
─ Puxa, que bom! ─ Disse ela. Eu também te amo muito, mas não quero casar ainda. Quero conhecer outras cidades, outros países, outras culturas. Depois a gente casa, tá?
Ao jeito deles, fizeram amor.
Um mês depois ela saiu da pequena cidade, foi para a capital e sobreviveu algum tempo com a ajuda financeira que ele enviava, até conseguir emprego numa empresa de engenharia.  
Ele lhe escrevia uma carta de amor por mês. Visitava-a duas vezes por ano para saber estava tudo bem.
Passados seis anos, Marluci devolveu a aliança de noivado que Renato lhe dera no dia que disse que não se casariam. Enviou por Sedex, dentro de uma caixinha de madeira que ela mesma pintara, forrada de veludo branco, com uma carta perfumada, escrita com nankin sobre papel vegetal, agradecendo tudo o que ele tinha feito, dizendo que não precisava mais da sua proteção. Formara-se na faculdade e iria se casar com um bom homem. Convidou-o para ser seu padrinho de casamento. O professor estava tão bonito, tão elegante, tão gentil. Ela quase desejou que ele fosse seu noivo novamente.
--- 35 anos depois ---
Marluci chegou ao trabalho muito agitada, com a respiração ofegante. 
─ Pronto está feito!
─ Está feito o quê? – perguntou a colega diante daquela frase tão exigente de complemento.
─ Assinei os papéis da aposentadoria – disse Marluci.
─ Mas já? E como vão ficar aqueles projetos que...
Marluci não ouviu uma só palavra que a colega disse.
─ Ih, caramba, deixei um amigo me esperando. Tchau Raquel. Vou sumir por uns tempos. Assuma meu lugar aí.  
Assim disse Marluci pegando a bolsa e voando porta afora. De longe avistou o amigo Robermeio. Ele era uma figura. Meio louco, meio excêntrico, meio confuso.
Ao se aproximar, constatou que Robermeio não tinha nada de meio. Era um sujeito muito extravagante.  Vestia um paletó azul marinho, com o bordado de uma âncora enrolada por um magote de corda muito bem feito. Os botões do paletó eram em pano de um azul mais claro. O “blazer” estava sobre uma camiseta branca de algodão de primeira linha, caindo por sobre uma calça de sarja bege claro, muito elegante. No entanto, no pé um sapatênis branco cobria uma meia multicolorida, dessas usadas pelos palhaços, cheia de anéis, cada um de uma cor. Era seu jeito meio hilário de ser. Era sua maneira meio irreverente de protestar contra a sociedade a quem sempre chamava de Locomotiva das Almas.
Robermeio tinha uma insólita profissão numa empresa transnacional: Era botânico nuclear. Profissão esta que associava a Física Quântica à Botânica. E era muito bom nisso, tendo recebido vários prêmios internacionais. 
Mas o que ligava os dois não era a profissão e sim a música, poesia e a paixão pelo vinho.
─ Então vamos? – perguntou Marluci fingindo não perceber as meias coloridas e o exótico lenço de bolinhas que ele usou para enxugar o suor.
E foram no rumo de um supermercado, em busca de pão, mortadela, queijo e vinho. Levariam tudo para uma pequena casa que alugaram por uma semana e de onde somente sairiam após terem cumprido a promessa de compor cinco músicas.
─ E se não conseguirmos compor as cinco músicas? – Perguntou Robermeio.
─ Escuta, você assistiu o filme o “Anjo Exterminador”, do Luis Buñuel? Não?! Pois é, fiz um pacto com “o coisa ruim”. Enquanto nossas composições não acabarem ele não abrirá a porta, vamos ficar lá trancados.
Vendo Robermeio meio preocupado, meio querendo roer a corda do bordado do paletó, Marluci acrescentou:
─ É mentira, homem. Isto é apenas literatice da minha cabeça. Vamos embora.
Pactuados ou não com o “coisa ruim”, a verdade é que os dois ficaram exatos treze dias trancados na pequena casa.  
Robermeio tinha habilidade natural para o desenho e paixão por bicicletas. Entre uma música e outra regada com muito vinho ele lançou uma ideia:
─ Marluci, vamos fazer um projeto de uma cidade sem avenidas nem automóveis? Existirão somente ciclovias e trilhas para andar a pé. E todas as empenas cegas receberão haicais e poetrix. E nos cruzamentos ou interrupções dos caminhos terão quiosques com livros de graça.
─ E vinho...
─ Vinho, pão, queijo e bancos de ferro sob os Ipês amarelos. 
─ Você ainda não desistiu dessa história de Ipê Amarelo, Robermeio? Esquece os Ipês. Vamos plantar árvores frutíferas. Laranjas, pêssego, banana, pêra, maçã... Vamos encher a cidade de maçã que é pra Deus não precisar expulsar ninguém do nosso paraíso. E as trilhas serão cobertas por parreirais para fabricação de vinho.
─ Boa! E as praças serão enormes hortas de legumes, verduras e plantas medicinais.  
Robermeio desenhava a cidade cicloviária com centenas de modelos de bicicletas. Com uma roda, duas, três; duplas, triplas; altas, baixas; desmontáveis, dobráveis; com e sem bagageiro; com e sem proteção contra o vento; com um pedal só para os pernetas; com um guidão giratório para os manetas. Marluci só apontava os defeitos e escrevia pequenas poesias para colar nas placas e nas empenas.
─ Rob, tem que inventar alguma coisa pra substituir esse capacete ridículo dos ciclistas.  
E ele desenhava dezenas de capacetes, cada um mais estrambótico do que o outro.
─ Este tá legal, Robermeio. Agora projete uma estação de rádio que só vai transmitir música, poesia e cultura para a cidade toda. É pra isto essa antena o capacete, não é?
─ Bom, eu tava pensando num pára-raios, mas já que você falou em música, dá pra fazer uma adaptação...
─ E se chover, Rob?
─ Capas de chuva, ora. De todas as cores, estampas e tamanhos.
─ Hummm... E proteção para a bunda? Esses selins machucam pra caramba.
E Robermeio projetou vários selins ortopédicos e roupas almofadadas.
─ E os cegos?
─ O que tem os cegos, Marluci?
─ Como é que eles vão andar de bicicleta, homem?
─ Engatando sua caçambinha ou bicicleta de uma roda só na traseira de quem passar. Não viu os modelos que criei aí para os caroneiros?
─ Ah, tá...  E se for um ladrão pedindo carona só pra roubar a bicicleta?
─ E porque alguém iria roubar uma bicicleta se a prefeitura vai fornecer esse transporte para todos os moradores?
─ De graça?
─ Não totalmente de graça. Terá uma pequena taxa incluída no IPTU. Dará direito ao pão, leite...
─ Como assim?
─ Marluci, nossa cidade será muito saudável. Todos comerão frutas, legumes e verduras sem agrotóxico, colhidas nas ruas e praças. Não haverá poluição provocada por combustível. Andarão de bicicleta fazendo exercícios naturalmente. Ouvirão música e poesia o tempo todo. Serão cidadãos pacíficos, cultos e saudáveis. A prefeitura não gastará quase nada. Então porque não garantir pão, leite, água, vinho, escola, moradia e transporte com igualdade para todos os cidadãos?
─ ...tá certo. Você é um gênio, Rob. Vamos fazer mais uma música para tocar na nossa rádio?
Professor Renato chegara a Curitiba e estava parado na esquina da casa de Marluci. Não saberia precisar quais daquelas dezenas de janelas eram as do apartamento dela. Desistiu. Pelo menos por hoje não procuraria por Marluci.
Aposentara-se de tudo, menos do seu passado. Ela continuava a ser sua garotinha. Será? Seria ela a sua base? Ou ela seria seu ácido? Já se passara trinta e cinco anos. Ele agora tinha suas bengalas. Precisava delas para continuar trilhando a pele do planeta.  
Em sua vida tudo tinha sido provisório mesmo durando décadas. Menos o amor por aquela garotinha que não sabia fazer café. Que cena! “O cadeirona, será que você não sabe que na sua frente tem um monte de cadeirinhas que precisam de proteção?“ Que cena! – voltou a repetir para si. “Ai, quantas saudades! Chega. Chega! Não vou ficar aqui parado olhando para essas janelas, viajando no tempo de costas. Preciso descansar. Curitiba é muito distante de Recife. Amanhã...”
... o amanhã chegara. Hospedara-se num hotel na Rua Visconde do Rio Branco. Jamais visitara Curitiba. Queria saber se era mesmo fria. Pela temperatura naquele momento nada podia adiantar, fazia calor. Afinal ainda era verão e o “El Niño” andava estacionado por aqui como uma grande nave, semelhante aquela do filme do Orson Wells.
Nada tinha avisado a sua garotinha quanto à data de chegada. No último email enviado quatro meses antes de seu computador quebrar, dissera a ela que viria no verão, entre Fevereiro e Março.
O recepcionista do hotel disse a Renato, que todo fim de semana, passava uma mulher meio louca perguntando se ele estava hospedado naquele hotel e repetindo a pergunta em todos os hotéis do centro de Curitiba.
Era bem a cara da sua garotinha fazer isso...  Resolveu deixar um bilhete e sair para um passeio como todo bom turista, para Santa Felicidade. Estava interessado em conhecer a Festa de São Cristovão. E lá se foi na barriga de um ônibus expresso, no rumo do Campo Comprido, seguindo a orientação do porteiro do hotel.
Marluci andava pela rua falando sozinha: “E se aconteceu alguma coisa? E se ele adoeceu? E se morreu? Não, ele não faria isso...”
─ Tem alguém chamado Renato Dantas hospedado aqui neste hotel?
─ Pela última vez: NÃO TEM NINGUÉM COM ESTE NOME HOSPEDADO AQUI, minha senhora!
Desde Fevereiro ela fazia a mesma maratona. Todo santo sábado percorria os dez hotéis centrais a procura do seu professor de Química. Observava tudo e todos com olhos de primeira vez. Recolhia papeizinhos amassados, palitos de picolé e outros pequenos objetos jogados no chão como quem limpa a casa para receber uma visita importante.
No sábado anterior, o coração quase saltou pela boca ao ver uma pessoa, que de costas, parecia ser “o seu” professor. Correu e agarrou o braço do rapaz.
─ Larga sua doida!
Sentou-se num banco da Rua XV de Novembro, decepcionada e exausta. Percebeu que parara no tempo e esperava encontrar um homem de trinta anos. Seu professor devia ter agora sessenta e cinco anos de idade e ela já passara dos cinquenta.
Só faltavam dois hotéis da lista para conferir. Marluci entrou no penúltimo já esperando que o recepcionista chamasse a segurança, como fez no sábado anterior, depois da sexta vez que ela estivera lá insistindo para ver o registro dos hóspedes. Mas, ao vê-la, o recepcionista abriu um imenso sorriso e veio em sua direção balançando um envelope.
─ Ele está aqui! Ele está aqui! E deixou um bilhete.
As pernas amoleceram. A visão turvou e Marluci foi ao chão. Acordou minutos depois no sofá do saguão. O recepcionista massageava sua mão carinhosamente e abanava seu rosto. Ela abriu o envelope tremendo e leu o bilhete: “Querida garotinha, cheguei. Espere-me aqui. Sempre seu, Professor.
Num misto de riso e choro, desandou a beijar o bilhete falando “Meu professor querido, meu professor querido”. Pulava na ponta dos pés como se ainda tivesse treze anos. Os funcionários também riam e abraçavam-se emocionados. Uma das camareiras serviu-lhe um chá de camomila. Outra trouxe um espelho e um batom. O hotel inteiro sabia da sua história de amor.
Professor Renato chegou trazendo um ramalhete de flores do campo e um cacho de uvas maduras. Andou até o balcão da recepção e, como se ouvisse um chamado, virou-se mergulhando seu olhar nos olhos de Marluci.
A cena congelou como nos filmes de Fellini. Ninguém se movia ou respirava. Não havia um ruído. Os automóveis, as pessoas na rua, a cidade toda estancou. Um minuto? Dois? Cinco? O cacho de uvas caiu das mãos do professor em câmera lenta. Ao tocar o mármore branco do piso alguns grãos soltaram-se e rolaram até os pés de Marluci desenhando um caminho cor de vinho. Ela levantou-se, respirou profundamente, fechou os olhos e flutuou em sua direção, murmurando:
─ Meu professor querido!
Ele, de braços aberto recebeu-a repetindo
─ Minha garotinha!
Naquele mesmo sábado, Robermeio estava na esquina da Rua Coronel Dulcídio com a Rua XV de Novembro. Pretendia comprar um cachorro para presentear à Marluci. Não perguntara se ela queria. Era mesmo assim, não gostava de rodeios. Se ela não quisesse devolveria o cão ao estabelecimento comercial sem pedir nada em troca.
Foi até a loja identificou o cachorro peludinho. Não saberia dizer qual a raça, nem tampouco quis sabê-la. De imediato chamou-o de Ypsilone porque o cãozinho de pelo todo branco tinha na ponta da cauda uma bifurcação escura que parecia um “y”. Saíram os dois da loja. Ele com uma ponta da coleira na mão e o cão com a outra extremidade no pescoço. Treze passos depois viu que não daria certo. O cachorro era muito pequeno, seu passo muito grande. O cão era um bebê. Pegou-o no colo e seguiram a pé em direção a loja onde deixara a bicicleta para uma revisão.
Minutos depois, estava ele pedalando por ruas do centro de Curitiba com um cãozinho dentro de uma cestinha, presa ao guidão da bicicleta. Rodaram um pouco meio sem destino até que parou na Praça Osório. Ali amarrou a bicicleta numa árvore, tirou da mochila uma corda com 1,50 m de extensão, colocou o cachorro na mochila e esta às suas costas, foi até uma palmeira esguia que tinha surpreendentemente crescido ao lado de um carvalho, tirou seu sapatênis e pôs-se a subir a árvore ao modo dos nativos do litoral. Subiu até atingir a altura de um galho do grande carvalho. Ali passou com cuidado da palmeira para a árvore vizinha, amarrou a corda na cintura e no forte galho da sua hospedeira, recostou-se no tronco que subia ainda uns bons seis metros para o alto, tirou o cachorro da mochila e alimentou-o com uma pequena mamadeira de leite que havia comprado na loja.
Depois da sua breve ação paterna pegou o celular e ligou para Marluci.
─ Você precisa vir aqui. Tenho uma grande surpresa.
─ Mas estou ocupada. Tem uma pessoa que veio de muito longe para me ver. Vou almoçar com ele.
─ Venha agora, você não vai se arrepender. Traga esta pessoa também. Venha já!
─ Está bem, vou tentar.
Aquele venha tão peremptório no final do diálogo não deixava espaço para dúvidas, tinha de ir até lá.
Marluci e Renato se dirigiram a pé até a Praça Osório. A avalanche de perguntas dela nem dava tempo a ele em conceder as respostas. Ficou sabendo de forma breve que ele também se aposentara, tendo lecionado na Universidade Federal de Pernambuco; casara por apenas quatro anos, mas não tivera filhos; se dedicara nos últimos anos a Astronomia, depois se tornara membro da Sociedade Brasileira de Ufologia, apenas por encanto com o espaço estelar, mas sem muita convicção nos OVNIS. E mais não soube por que chegaram a Praça Osório e se puseram a procurar Robermeio. Foi ele quem os viu primeiro.
─ Ei! Olhem para cá!
Marluci rodou para um lado, rodou para o outro na sua saia de chita homenagem aos tempos de infância pobre e ao professor sem conseguir entender de onde vinha aquela voz, apenas identificada pelo timbre como sendo do amigo botânico. Sabia que ele não iria mais chamar. Fazia parte de sua personalidade mostrar-se e logo se esconder, não importando se o achassem ou não.  
Procurou-o alguns minutos, agarrada ao braço do seu professor, que calado, a acompanhava sem nada dizer, carregando no rosto um ar de idiota surpreendido e ao mesmo tempo com um ligeiro sorriso de tolerância amigável. Em certo momento ela colocou as mãos na cintura e olhou para o alto. E lá estava Robermeio, balançando-se pendurado na árvore, segurando o cãozinho.  
─ Desça daí já, ô maluco!
─ Não! Estou “de varde!”
─ Está nada. Desça já daí! Você quer me deixar nervosa? Veja, estou acompanhada de um amigo que veio me ver lá de muito longe...
─ Humm!!! Não, não vou descer. Vocês é que têm de subir.
─Olha que eu chamo o Corpo de Bombeiros!
Marluci sabia que Robermeio odiava todos os homens de farda. Para ele eram todos lacaios dos podres poderes. Todos apaniguados da ditadura dos conquistadores. Ele preferiria se jogar lá do alto da árvore, a obedecer a ordem de um fardado.
Desceu, deu o cachorrinho à Marluci e depois dos cumprimentos e da apresentação, sacou uma pequena faca de ponta, fez menção de cortar a própria garganta, mas se virou ligeiro e jogou a faca ao encontro da árvore onde tinha se hospedado por hora e meia. Caminhou até o pé de carvalho e esculpiu no tronco “Há mar no meio”. Dobrou a faca, colocou-a no bolso e saíram os três rumo ao Ristorante Spaghetto.
Pediram um penne a marinara com azeitonas pretas, acompanhado de um bom malbec Argentino, da Região de Mendonza, o vinho preferido de Robermeio.
Em certo momento, enquanto aguardavam a comida e o retorno de Robermeio que fora ao banheiro, o Professor tomou a mão de Marluci, colocou em seu dedo aquela mesma aliança de trinta e cinco anos atrás e perguntou:
─ Quer casar comigo, garotinha?

VOU-ME EMBORA PRA BRASÍLIA

Vou-me embora pra Brasília
Pasárgada é tão triste
Lá, Papai Noel existe,
E o dinheiro vem de pilha.

Lá terei na minha cama
Mulheres bem fornidas
Benesses autoconcedidas
Longas férias, muita fama.

Estarei com senadores
Viajarei mais que turista
Pago com dinheiro a vista
Do bolso dos eleitores.

Serei um rei absoluto
Com servos a me abanar
Champanha e caviar
Segurança e usufruto.

Andarei de Limusine
Com chofer e batedor
Trocarei o velho amor
Antes que ele me fascine.

Vou-me embora pra Brasília
De Pasárgada enjoei
Lá sou bem chegado ao rei
A vida é uma maravilha!

A civilização, oh!
Mãe Joana é graduada
Louca de Espanha, nada!
Veio lá do Cafundó.

Montarei quartos-de-milha
Subirei de elevadores
Tomarei banhos de flores
Vou-me embora pra Brasília.

Pasárgada - deu pra bola!
Nada mais cá me desfruta
As bonitas prostitutas
Em Brasília gastam a sola.

Pra Brasília vou-me embora
O processo é bem seguro
E o trabalho não é duro
Tudo lá chega na hora.

E se tão triste eu estiver
Triste tanto de morrer
O rei virá me socorrer
E trará outra mulher.

Lá terei um moto-boy
Pra buscar as encomendas
Alguém pra contar lendas
E enfermeira pro dodói.

Tem Internet banda larga
Celular de graça e mordomias
E se eu quiser orgias
Em Brasília é como praga.

Brasília é só alegria!
O Bandeira está por fora
Vivo se estivesse agora
Pra Pásargada não iria...

Vilmar Daufenbach

Se Deus fosse uma guria....

poesia de Elian Woidello


E se Deus fosse uma guria?
O sol nasceria iluminando
Toda alma vazia
Com delicadeza
E o mais frágil calor
Até tocar na janela do meu quarto
Como se possuísse chaves
Abriria a janela
E tocaria meu corpo até eu despertar
Toda chuva seria de perfume
E todo medo seria de ir embora cedo
Se Deus fosse uma guria
Toda noite seria de lua
Toda lua seria uma estrela
E toda estrela um desejo
Para a humanidade desvendar
Se Deus fosse uma guria
Os ateus seriam devotos
Com a tímida certeza
De um dia tocar o céu
Os devotos continuariam a temer o inferno
Mas amando de verdade o paraíso
Se Deus fosse uma guria
Eu calaria minha boca
E rezaria
Para estar dia a dia mais perto
Certo de amor
Todo dia...

(Elian Woidello)