GOTA A GOTA
Era um poço raso, vazio;
com cinco filtros perfeitos
e um sexto,
que às vezes fazia sentido.
Através deles,
como um dreno ao viés,
a vida me foi preenchendo: gota a
gota.
Primeiro, assentou pedras, as
mais pesadas,
depositadas bem no fundo da
infância.
Serviram para controlar a umidade
da alma
e fixar meus pés no chão.
(Nasci tão leve e líquida. Não
fosse esse peso,
eu seria um pássaro ou um peixe.)
Depois, a vida pregou-me outras
peças.
Encaixou-as umas sobre as outras,
deixando raros intervalos entre
elas.
Por esses vãos,
circularam rios de sentimentos.
E assim, foi fazendo seu trabalho.
Construindo-me.
Habitou-me de amigos, amores,
filhos.
Ergueu paredes, dividiu-me.
Plantou jardins, porões, sótãos,
teias.
Quando percebi, estava cheia.
Comecei a escavar-me.
Estou quase no fim.
Purgando: gota a gota
Abrindo espaços dentro de mim.
(marilda confortin)