Poesia Ode ao bar

eu, que flagra!


Certos bares
são como lares
que nos acolhem
que nos escolhem
para adotar.

Órfãos que somos
em noites insones
lobo sem dona
loba da estepe
valetes e damas
vão se encontrar

Certos bares
são como Hermes
de saudosos bardos
Prados, Cardosos,
Walmores, Bias,
Cachorros Loucos
pela poesia.

Certos bares
são relicários
Kappelle, Stuart,
Alemão, Pudim,
Becks, Batata,
Bife, Tatára
tomara que seja
sempre assim

Entre um bar que abre
e outro que fecha
tem sempre uma brecha
onde a poesia
namora escondido
com a boemia.

Curitiba é o bar
e o bar é o mar
que não se comporta
que abre a porta
e se deixa vazar.

Curitiba é o bar
e o bar é o mar
onde a musa
da música
vai se banhar

Metamorfose

imagem: http://www.metamorphose.co.at/

(Da série: “histórias secretas de amigos e inimigos” – por Marilda Confortin, com a colaboração e cumplicidade dos personagens envolvidos)

Era uma vez, uma lagarta chamada Ana, que sonhava ser leve como borboleta, queria ser perene como uma pedra e forte como uma mulher.
 
No tempo em que era uma lagarta, vivia se arrastando, comendo migalhas que caiam  já que não alcançava a copa das árvores, tinha medo até das poças d´agua porque não gostava da sua imagem refletida nos espelhos e vivia procurando um lugarzinho seguro para construir um casulo e criar seus filhotinhos conforme as regras da sociedade do seu pequeno mundo.

Um dia Ana encontrou um robusto arbusto que lhe estendeu a mão. Teceu seu casulo, acomodou-se lá dentro e sentiu-se muito feliz e confortável por algum tempo. Chegou a esquecer os outros sonhos.

Um dia ao acordar, percebeu que o galho havia quebrado, a casa havia caído e os cupins haviam devorado tudo o que ela amava.  Sentiu muito medo e chorou. Mas, chorou por um tempo bem menor do que o tamanho do seu medo e sua dor. Chorou um tempo de inseto. Olhou para trás e viu que o caminho do passado tinha crescido e já era muito maior que o caminho do futuro. Ficou pensando numa maneira de chegar rapidamente ao fim daquela estrada.

Pensou em meter uma bala na boca, mas só tinha bala de hortelã e já estava enjoada de ser vegetariana. Lembrou-se de que um dia quis ser borboleta e pensou que, se voasse, poderia vencer a distância com mais rapidez e recuperar o tempo perdido.

Engoliu o choro, subiu nos escombros da própria crisálida, desamassou as asas, pulou de cabeça na nova vida e sobrevoou o pequeno quintal.  

Mas, logo percebeu que suas asas rotas pelo desuso, já não eram tão fortes. As flores do jardim que durante muitos anos Ana admirava debruçada sobre o peitoril da janela de seu casulo, já alimentavam outros bichos tão ou mais vorazes que ela. Havia pouco néctar e muitos predadores.

Conheceu uns bichos grilos interessantes que lhe contaram sobre os mundos além do muro. Encorajaram-na a voar para mais distante.  

Subiu no mais alto galho, reuniu forças e pulou.  Conheceu a fúria dos ventos, o frio da noite, a fome dos pássaros, a escassez das flores, a crueldade dos humanos, a idade da terra e descobriu que o céu não era azul, talvez nem existisse.

Deu-se conta de quão efêmera e frágil era a vida de uma borboleta. Será que era mesmo preciso ter asas para voar? Porque ela não se sentia tão leve como imaginava ser uma borboleta?
Depois de um tempo, se deu conta que, de tanto lutar para ser livre, seus sentimentos haviam endurecido ela se transformara numa rocha.

Sentiu-se estranhamente aliviada com essa nova metamorfose. Afinal, um dia ela sonhou ser pedra.

Pedras não precisam respirar, nem comer, nem voar, nem reproduzir, nem pensar, nem se explicar, nem defender-se de predadores. Pedras não precisam ser leves, nem jovens, nem preciosas, nem bonitas. Pedras são silenciosas e sábias. Guardam segredos e sabem a história dos tempos. Não necessitam das necessidades humanas.

Encarou o medo dos espelhos e rolou para a beira de um rio que passava distraído em sua frente.

Ana viveu um longo tempo de pedra, contemplando o nascer e o morrer dos dias e de tudo que nasce e morre dentro dos dias. Ouvia histórias de águas passadas, deixava o tempo lapidar seu corpo, sua mente e, sem resistir deixava-se levar pelas horas vadias.  Adormecia ouvindo canções de ninar das cachoeiras.  Sentia-se livre e leve como nunca.

Numa manhã clara de inverno, uma imagem refletida nas águas do rio chamou sua atenção. Parecia tão familiar... Forçou os olhos quase cegos para enxergar melhor. Qual não foi seu espanto, ao reconhecer seu próprio rosto estampado naquelas águas.
   
Ana havia enfim, se transformado numa mulher. Estava no jardim de uma clínica. Inclinou-se um pouco mais para ver sua imagem. Foi quando a cadeira de rodas que a manteve inerte como pedra por muitos anos moveu-se e ela caiu dentro do lago.

Fechou os olhos e inspirou profunda e calmamente sua imagem refletida nas águas.

Tudo acabou como sonhara. 

A borboleta cumpriu seu ciclo.  

Cagadas

Estou aqui, ainda acordada. O dia roubou o sono da noite. Abro a janela (sempre as janelas... o que seria da vida não fossem as janelas e os benditos parênteses?) e fico olhando um céu imenso, estrelado.
Quantas dessas estrelas já se apagaram e seu brilho ainda me atinge?
Quantas existem, cuja luz ainda está a caminho?
Olho um céu de cem anos atrás e tento esquecer o dia de hoje e os problemas que tenho que resolver amanhã. Que paradoxo!
Alguém pode avisar aquele céu que ele não existe mais?  Alguém pode dizer àquela estrela que seu brilho chegou tarde? Alguém aí em cima pode me dar uma luz?
Meus filhos acordam e perguntam com quem estou falando. Nem respondo. Vou até a cozinha e pego um copo de água. Eles vão ao banheiro e depois empilham-se na minha cama. Esquecem que cresceram. Querem saber por que perdi o sono e ao ouvir meu longo e duplo suspiro, o filho me diz:-    Sabe mãe, esse ar que você inspirou aí, ainda contém poeira cósmica.-    E essa água que você está bebendo,  já foi xixi de dinossauros - Diz a filha.
-    Pode ser, meus filhos... Pode ser... Mas neste momento estou respirando o pum que vocês acabaram de soltar. E o xixi que vocês acabam de fazer, amanhã será tratado, voltará às torneiras e será debitado na nossa conta de água. A realidade é agora, gente.
-     Putz... Eu fiz o número dois, também... E puxei a descarga. Que nojo! Quantos miligramas de urina a gente elimina por dia?
-     Sei lá... Uns quinhentos, acho.
-     E de merda? Meio quilo?
-     E eu sei? Isso é hora de fazer essas perguntas?
-     Uma cidade como Curitiba, que deve ter em torno de dois milhões habitantes, despeja um milhão de litros de mijo e mil toneladas de merda por dia. É isso? Imagina isso num ano?  365 mil toneladas de merda por ano, mãe... P u t a  q u e  o  p a r i u!
-     É uma grande merda! E vocês são jovens ainda... Imagine essa bosta toda vindo à tona quando vocês tiverem minha idade!
Demos boas risadas, apagamos a luz e dormimos abraçados. Afinal, com tanta merda neste mundo, porque perder o sono por causa de uma mensalidade atrasada na faculdade e outras pequenas cagadinhas do dia a dia?
Antes de fechar a janela, dei mais uma olhadinha pro céu e vi que as estrelas estavam todas lá, piscando prá mim.
"Ouvir estrelas... ora, direis"
Bilac sabia das coisas...

(Marilda Confortin -  in Pedradas - crônicas, 2002)
RUA 13


O beco é escuro…
Rua 13…Rua 13…
Bocas que sugam sangue
Olhos que choram sangue
Solidão e miséria.

É noite…
Sinto qu’é noite.

Não porque o sol s’escondesse
Não porque a sombra descesse
Mas porque no meu coração
O brado dessa miséria
Se fundiu, se faz sentir.

É a noite que nos arrasta.

Não é só a noite…

É noite. Uma noite espessa, sem paz.
Sem Deus, sem afagos,
Sem nacos de pão, sem nada.

Uma noite sem distâncias…
Apenas noite.

Mas por trás dos altos montes
A aurora vem surgindo.

Tudo o que à noite perdemos
O dia nos traz novamente.
Surgem aves chilreantes
Badalar manso de sinos
Cantos suaves do mar.

No alto da Rua 13
Brilha tremendo uma luz.

É o sol…A esperança,
Que um dia aquela rua
De almas sem luz e sem sol
Também veja o alvorecer.



Entre o fomos e o fui...
Fado norte, fado sul
Nacos de nada e tudo...

Joseli
SOLIDÃO DE UMA ESTRELA
Sonia Maria Mazza
Somente uma estrela

ficou,
triste e só na melancólica noite.

As outras todas...
Umas morreram
outras
desapareceram.

E a estrela só,
vagando no firmamento
com sua lânguida luz
quase fenecendo,
tropeçava nas estrelas mortas
buscava lembranças
das desaparecidas.

Derramou, então,
as primeiras lágrimas
de saudade.

O firmamento
sóbrio e sombrio
fechado em seu mundo calado
permaneceu indiferente
à dor daquela estrela.

Tornando-se cúmplice da noite
tudo desapareceu,
deixando apenas
a estrela só.

E ela,
percorrendo o espaço sideral
viu todo o universo
e em seu pranto convulso,
sentiu-se ainda mais só....

Sônia Maria

O resto da minha vida - de Tonicato Miranda



para os amigos do Varandaes

Foto: Osni Ribeiro

Triste... é assim
meus olhos choram
cinza... o jasmim
refletindo a cor do céu
cinzas no jardim e em mim

O que fazer agora
com o resto da minha vida...
ouvir Bill Evans, por horas
a tristeza escorrendo, se deixando levar
rio abaixo, tempo afora

O piano deixa cair um plim
notas musicais em sequência
lentamente caem também de mim
são folhas da memória descendo
calmamente do rio ao mar, e ao fim

O que fazer amanhã
com o resto da minha vida
passear no parque envolto em lã
sentar num banco, mirar passarinhos
ver na pedra Bashô e o salto da sua rã

O piano convida e eu vim
emprestar o ouvido à emoção
a lágrima pulando do olhar assim
mais do que rio, ela é o barco da alma
reflexo musical, um acorde: meu plim

O que fazer na próxima semana
com o resto da minha vida
papéis antigos, fumaça na cabana
neste inverno rigoroso revejo amigos
um bom vinho pode me levar a Havana

Triste... é assim
meus olhos choram
cinza... o jasmim
refletindo a cor do céu
cinzas no jardim e em mim

Tonicato Miranda
Curitiba, 18/09/2004

O VENDEDOR DE AGULHAS

de Daniel Farias


há uma dor fria
que atravessa a fina lâmina
do vendedor de agulhas.

há uma metálica metáfora
que corta a tarde cinzenta,
entre surdinas e sirenes ocultas,
do desconhecido e invisível
vendedor de agulhas.

há um silêncio de ferro
nos rostos, nas almas
e nas calçadas por onde passa
o vendedor de suplicantes agulhas.


há um único fio que prende e conduz
o homem que passa, sem ser visto,
a outros homens que carregam
nos bolsos descosturados uma
dor que perfura a alma e denuncia
aquilo que se perdeu...

comovendo junto

árvores sem movimento
dói o mormaço lá fora

eu moro por dentro
vivo de brisa
e demoro longe

não vejo a hora
quebro vento
e arrumo galho

o pouso da ave
vale quanto penso
não move uma palha

apenas o sopro do sentimento
comovo uma folha

(Roberto Prado)